quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Desmitificando Clarice Lispector – O começo do fim


Nos meus dez anos de idade, a escrita de Clarice Lispector me foi apresentada por uma professora, que, analisando as minhas “composições” (segundo ela, na época, “nunca narram fatos”), me levou à biblioteca da escola, dizendo: “Eis aqui alguém que escreve como você”. Com o livro nas mãos (“Perto do Coração Selvagem”), agradeci em silêncio, pois não sabia do que exatamente a professora falava. A partir dali, me identifiquei com Clarice Lispector, minha companhia constante até hoje.
Naquela época – e faz tanto tempo! -, eu não tinha acesso à informação, no máximo, à edição de domingo do Correio do Povo (ainda tamanho standard, grandão), aonde eu me deliciava com Mário Quintana, no Caderno H, título, inclusive, de um livro dele, posteriormente lançado. Mas não é sobre Quintaninha que quero escrever – qualquer dia desses, conto pra você uma entrevista que tive com o escritor.
Pra você ter uma idéia da minha desinformação, só lá pelo final de 1978, soube que Clarice Lispector tinha morrido, em dezembro de 1977. Confesso que me doeu saber que não poderia alimentar sequer a possibilidade (esperança?) de conhecê-la, olhar profundamente nos olhos profundos dela.
Sem vaidade alguma, acho que já li e reli (tantas e tantas vezes) todas as obras editadas de Clarice Lispector, junto com livros de autores que falam sobre a “veia literária” dela, e mais matérias a respeito da escritora, incluindo até aquelas notinhas pequenas, em “pé de página”. Aliás, este ano, a atriz Beth Goulart escreveu, produziu, lançou e encenou a peça “Simplesmente eu, Clarice Lispector”, no Rio de Janeiro. Escrevo isso, pra que você saiba do meu interesse por toda obra literária da ucraniana que tornou-se nordestina brasileira, e morreu carioca.
Talvez, por identificar-me com a escrita de Clarice, busquei 'conhecê-la', do jeito que me era, e ainda me é, possível: muita pesquisa. Pouco me interessei sobre o que escreveram ou depuseram sobre ela, por que o “mito Clarice” foi tornando-se, a cada leitura minha, gigante, e, por fim, um “monstro”. Diante do “monstro sagrado”, resolvi fazer o caminho de volta, e reler todas as cartas dela a tanta gente – cartas pessoais, íntimas mesmo (publicadas em livros, obviamente). Percebo que, de tempos em tempos, outras correspondências de Clarice Lispector são reveladas, com a edição (e todo lucro) de mais uma obra, justamente da escritora que morreu de câncer, em condição de indigente, num hospital público do Rio de Janeiro. (Ah, Clarice, se um dia você sonhasse que daria “mais lucro” morta do que viva!... - a quem: ao filho Paulo, ainda vivo?)
…Afinal, quem foi, quem é essa mulher até hoje chamada “hermética”?... Que alma é essa que deixou escrito: “Cuido dos meus filhos. Cuido da casa. O resto é mito”?... Que sonhos tinha?... Alimentou vaidades?... O que lhe fazia mal?... O que lhe fazia bem?... Como o ato de escrever se processava nela, que tentava traduzir isso, buscando compreensão?... Perguntas... Perguntas... Gosto mais das perguntas do que das respostas, que limitam e acomodam. Foi a própria Clarice quem escreveu “eu sou uma pergunta”. E eu respondo à ela: Também quero que você continue sendo uma pergunta, Clarice – sem mitificação.
Minha intenção, aqui, é uma das mais ousadas, pois pretendo percorrer a contramão de tudo o que já li e reli sobre a escritora, partindo da própria Clarice Lispector. Como qualquer ser humano, também ela escrevia cartas, sem imaginar que estivesse se revelando tanto, pois mantinha correspondência com pessoas com quem, provavelmente, buscasse, se ainda não tinha, intimidade humana. Foi Clarice quem deixou escrito que “nasci com o desejo de pertencer”. Parece que era mesmo o que ela mais queria.
Pretendo desmitificar a 'idéia' sobre Clarice, ou, senão, pelo menos, fazer pensar a respeito – não macular imagem, ou destruí-la (quem sou eu pra isso?) -, com a mais profunda intenção de, depois de tanto tempo, alguém acolher Clarice Lispector, quem ela realmente foi (é), longe da mitificação toda, que a fez silenciar. Nas minhas leituras e releituras, percebi que, aos poucos, Clarice foi se desintegrando. Estilhaçada, viveu sem rumo, correspondendo (ou, pelo menos, tentando isso) à imagem mitificada que deram-lhe – talvez, a única coisa que tenha recebido, depois de querer e esperar tanto.
Não pretendo, nem quero definir Clarice Lispector (ser humano algum é catalogável). Seria reduzi-la. A intenção é desmitificar a imagem que permanece dela entre nós. Se quiser acreditar no que escrevo, pesquise, e você também terá a revelação: a vida de Clarice não foi feita só de sombras, escuridão aterradora. Não. Clarice Lispector, longe da catalogação de “monstro sagrado”, foi ser humano – como você, como eu -, numa vida de luzes e sombras, risos e lágrimas, sonhos e desenganos. Ela ousou viver. E viveu tudo intensamente, me parece – tão intensamente, que bebeu até a última gota de sensibilidade. Conheceu a fragilidade mais recôndita, e não soube mais o que fazer com a vida a que se permitiu. Longe dos próprios sonhos de menina, deixou-se levar (pra onde, Clarice?) por uma realidade que se lhe apresentava cada vez mais estranha.
Deixarei meu texto na contramão, aqui, em quatro postagens, previamente escritas, após intenso e intensivo trabalho de organização, que demandou tempo, distanciamento e racionalidade. Não digo imparcialidade, por que tenho um só objetivo, neste trabalho que pretendo continuar, além do blog. Em uma semana, pretendo 'fechar' o ciclo da (tentativa de) desmitificação. Mas continuarei tentando ouvir (não interpretar) o silêncio de Clarice Lispector... (“Há um silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas palavras.”)

2 comentários:

  1. Clarice, como Kafka, era autista (aspie): isso explica a sua genialidade e a forma como vivia.

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