domingo, 6 de dezembro de 2009

O mês de ser “bonzinho”

Acho que dezembro é mesmo o mês de ser “bonzinho”. A maioria das pessoas passa o ano inteirinho, sem pensar na maioria das pessoas que faz parte da vida dela. Chega dezembro, sente vontade até de “beijar o português da padaria”, como canta Zeca Baleiro.
Dezembro é (quase) mês da riqueza dos pobres, que recebem doações inesperadas. Chega às favelas, todo lixo dos bairros de gente rica, ou 'ascendente ao posto'. São roupas, calçados, móveis, eletrodomésticos, e até alguns eletrônicos – tudo o que foi substituído por outros produtos de melhor qualidade. Ah, muitas cestas básicas são distribuídas aos famintos, em dezembro. Até parece que os pobres coitados só se alimentam, um mês a cada ano. Nos outros onze meses, eles sobrevivem, reviram lixeiras de restaurantes, onde a gerência manda os funcionários jogarem os restos de comida fora, por que é proibido fazer doação de alimentos perecíveis (perigo de contaminação – quanta ironia!).
Alguém pode até dizer: “Que bom que existe dezembro!” Nada contra, sinceramente. Mas não consigo deixar de pensar, vivenciando dezembro, nos outros meses de cada ano que passa. Tá certo que nem um outro mês encerra o ano, nem faz lembrar mais a história cristã. Sobre isso, sem me meter em religião, ou crença, imagino que Jesus Cristo não praticava bondade, caridade, solidariedade, amor ao próximo, um mês a cada ano. Confesso que não conheço tão bem a bíblia, mas também nunca ouvi alguém (que tenha lido toda a bíblia) contar que Jesus e os apóstolos ficavam 'de férias', onze meses por ano, da missão cristã.
Agora, me vem uma idéia maluca: Será que introjetamos tanto a imagem do Papai Noel, que aparece e reaparece somente no mês de dezembro?... Conheci um velhinho que vestia-se de Papai Noel, todos os anos, e chorava miséria, nos outros onze meses. Um dia, perguntei-lhe por que eu não o via durante o ano, senão só em dezembro. E ele me respondeu, cabisbaixo: “Só em dezembro, eu tenho trabalho e salário. Nos outros meses, eu quase nem vivo”. Fiquei sabendo que o velhinho morreu, sozinho e abandonado num barraco – não era dezembro, nem ele estava vestido de Papai Noel...
Até é imaginariamente compreensível o que chamo de 'febre de bondade', que 'acomete' a humanidade, neste mês tão especial. Acho mesmo que é somente em dezembro que a maioria das criaturas humanas se permite viver a própria humanidade, talvez, justamente por que a maioria também está mais receptiva. O que começa numa iniciativa pessoal torna-se, em pouco tempo, uma troca, e depois em moto-contínuo. É assim que surgem as grandes epidemias – neste caso, 'epidemia do bem', com “tempo de vida” previamente conhecido (até 31 dias).
Em janeiro, me parece, a maioria das pessoas desperta (do 'entorpecimento de bondade', ficam as lembranças), com as cobranças para pagamento das contas feitas a crédito, no final do ano. Fevereiro é mês de carnaval, e poucos ainda falam no “natal passado”, ou na “festa da virada de ano”. Com o carnaval, vem o movimento, e tudo volta, senão ao 'normal', ao ritmo habitual: trabalho, escola, mil e uma correrias.
Em um dia qualquer, num desses meses que não são dezembro, você (ou alguém) encontra um maltrapilho (irreconhecível à tua memória) que te cumprimenta, com todo sorriso que pode te dar, com os poucos dentes que resistem bravamente à cárie. Você, sem saber quem ele é, julga apressadamente (não há tempo) tratar-se de algum assaltante, e atravessa a avenida às pressas. Você jamais lembrará (nem no próximo dezembro) que foi você mesmo quem foi ao barraco do maltrapilho desconhecido, e presenteou-lhe com a cesta básica que recebeu de um fornecedor, mais algumas “tralhas” que a tua família tirou dos armários, para dar lugar aos novos produtos comprados, recém lançados na Capital.
Não demora muito (“o tempo voa” - cada vez mais pesado), e outro dezembro chega. Como agora. E você se permite, mais uma vez, olhar para o lado, enxergar a criança que brinca na calçada, o doente arrastado por um par de muletas emprestadas, o velho que olha para o nada, sozinho, no banco da praça. E tudo isso, mais uma vez, faz brotar a sensibilidade do teu coração humano, que só tem uma fresta aberta, no mês de dezembro. Se você for mais longe no pensamento, saberá que nada muda, neste mês tão especial. Dezembro só é especial, por que você, por que eu, por que a maioria de toda gente resolvemos, juntos, torná-lo especial. Se você pensou até aqui, deixa dezembro ser dezembro, bem do jeitinho que é, mas vá adiante: se permita à humanidade, também, em janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro, novembro, e outro dezembro, e mais um janeiro, e outro fevereiro, e março, e abril, e maio, e junho, e julho, e agosto, e setembro...

Um comentário:

  1. Nara, também me incomoda essa "bondade" com data marcada. Queria muito que fosse todos os meses, todas as semanas, todos os dias...
    Mas, se perguntar a quem recebe, com certeza vai dizer que é melhor essa "bondade" anual do que bondade nenhuma.
    Eu tenho tentado, você é testemunha, transformar o livro da Voz da Poesia em renda durante o ano inteiro. Sem resultado.
    Agora vamos ver se o "espírito natalino" faz algum efeito. ;)
    Lembrando que a renda líquida do livro é para doação.
    E destaquei 3 formas de ser solidário (no Natal :p) neste post:
    http://poeticaecotidiana.blogspot.com/2009/12/escolha-ser-solidario.html

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