quarta-feira, 5 de maio de 2010

Morto vale mais

Há pouco, fiquei sabendo que o quadro de Pablo Picasso “Desnudo, hojas verdes y busto” (Nu, folhas verdes e busto), de 1932, foi arrematado por 106,4 milhões de dólares, um recorde para obra de arte, na casa de leilões Christie's, de Nova Iorque. Com toda certeza, Picasso vivo nunca faturou tanto.
A exemplo dele, em piores situações até, outros tantos artistas morreram na miséria absoluta, e hoje têm suas obras supervalorizadas. Isso acontece com Clarice Lispector, Fernando Pessoa, Beethoven, e tantos e tantos e tantos outros.
Isso me leva pensar que morto vale mais. Vou até mais longe, pensando que morto é mais visto, levado a sério, amado (quem sabe?). E não me refiro somente aos artistas, que, na maioria, têm suas obras reconhecidas e valorizadas, depois da morte deles.
Morto ‘tá’ valendo mais – que os viúvos e órfãos confirmem o que digo.
Não leve uma discussão adiante, quando um morto (ou morta) seja envolvido (a). Nem há elementos comparativos. O morto (morta) é a porteira escancarada de todas as possibilidades, enquanto nós, os “pobres mortais” humanos (ainda vivos), somos limitados, senão por nós mesmos, pelos outros, ou pelas circunstâncias interpretadas, e, como se não bastasse, ainda cometemos erros em cima de erros (morto já não erra mais).
Cá entre nós, eu fujo de conversas em que tentam fazer com que eu faça alguma coisa, justificando com “se fulano (ou fulana) estivesse vivo (a), faria isso, ou aquilo, por mim”. O morto (a morta) sempre faria tudo, diria as palavras mais sábias, e calaria com exemplar inteligência. Tem gente que diz que a morte santifica as pessoas (mortas, é claro!). Eu concordo, e vou adiante, pensando que, além de santificar, a morte causa a valorização do ser humano que não mais existe entre nós. Quantas vezes a gente nem “dá bola” pra uma criatura, que, quando morre, nos faz chorar de saudade?...
Renato Russo, que também já morreu, reproduziu uma frase que leu, num desses livrinhos de bolso, e que, até hoje, faz o maior sucesso, na música “Pais e Filhos”: “É preciso amar as pessoas, como se não houvesse amanhã”. ‘Cão-cordo’ plenamente. Mais que cantar, temos de exercitar o amor, não só com palavras, mas gestos, atitudes, coisas que não se fala, por que não há palavras na nossa riquíssima língua portuguesa. Mas é preciso que exercitemos amor, com segurança, sem esperar que saibam reconhecer, que nos interpretem bem. Tudo o que é humano é passível de interpretação, que decorre da vivência particular de cada um. Não há o que exigir, a não ser doar amor, sem esperar compreensão.

... E pensar que eu pensava que eu não chegaria nos tempos em que haveria tamanha inversão de valores, quando os mortos valeriam mais que a maioria dos vivos juntos... Pelo menos, todo mundo morre... Que consolo!...

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