terça-feira, 16 de agosto de 2016

Nosso cometa da liberdade partiu

Realmente, Elke maravilhava, por onde passava. Nosso cometa da liberdade partiu, nessa madrugada. Alguns não tiveram “olhos para ver”, e riram, sem pensar, do jeito que Elke falava, se vestia, se maquiava. Mas Elke Maravilha era mais, muito mais – a pisciana Elke Georgievna Grunupp (“brasileiríssima”, nascida na Rússia) era intensa, profunda, inteligente (dominava nove idiomas: alemão, russo, italiano, espanhol, francês, inglês, grego, latim e português), livre, apaixonada e apaixonante. Por onde passava – na televisão, nas calçadas, nas praças – causava alegria e antipatia imediatas.
Em mim, Elke sempre foi Maravilha. Quando menina, eu me encantava com a imagem irreverente de Elke – e eu ainda nem sabia o que era liberdade. Em entrevista, Elke contou como tornou-se quem ela era: “Um dia (por volta dos 18 anos), eu acordei de manhã, fui no meu armário, e vi que só usava preto. Eu pensei: Nada disso. Peguei uma calça e rasguei toda, botei uma meia roxa, enchi a cara de batom, desgrenhei o cabelo e fui para a rua. Levei porrada. É difícil ser a primeira, a ousar, a usar esse visual”. Provavelmente, Elke soubesse que não era o visual que aterrorizava, mas a liberdade que continha, nas atitudes dela. Até hoje, a maioria, que segue a boiada, teme o desconhecido, justamente por que aponta o caminho da liberdade.
Nosso cometa da liberdade partiu, e deixou o que muitos (maioria) não querem pensar: “O mundo não tá careta, o mundo tá muito ignorante. E a ignorância é mãe e irmã do preconceito. (…) Sou contra bandeiras, sou a favor de boas maneiras. (…) Solidão é invenção de gente que quer chamar atenção. Tenho muitos momentos de solitude, solidão, não. Cada um dos mais de sete bilhões de habitantes desse mundo é parte de mim. Sou impregnada de mundo. (…) Amo gente e gosto sempre de estar cercada por amigos. (…) Eu não sou de direita, nem de esquerda, talvez eu seja de banda. Porque eu não acredito, nunca acreditei em ideal fora do coração. Eu só acredito em ideal no coração. (…) O poder não corrompe, revela. (…) Sou movida pela paixão. (…) A mentira é o que mais me revolta. (…) Atualmente, não assusto mais, mas tem gente que acha que sou travesti. (…) Sempre fui assim. Não sei ser de outro jeito. Tudo na minha vida, na minha carreira, foi acontecendo. Não escolhi nada, fui escolhida. Não programei nada, e até hoje ainda não sei o que quero ser quando crescer. (…) Não tenho problemas em ficar velha, mas, ultrapassada, nunca. (…) Ser livre é um trabalho de muitas gerações, não incomoda absolutamente. Mas nós não estamos prontos para isso. A gente tem liberdade de escolher a prisão que a gente quer ficar. Tem gente que é até escravo da liberdade: procura tanto a liberdade, que fica escravo dela. (…) Fiz três abortos. Sempre soube que não tinha talento para isso, que não saberia educar uma criança. Parir é fácil, mas educar é difícil. Setenta por cento das mulheres que têm filhos não deviam. Sou completamente consciente do passo que posso dar. Eu nunca quis segurar homem. Sempre disse: 'Quer ter filhos? Vai ter com outra'. Não estou aqui para interferir no carma de ninguém. (…) Eu sou uma vira-lata. Minha mãe era alemã, meu pai era russo, minha avó mongol, meu avô era mestiço de viking com azerbaijano. (…) Nós todos não temos definição. Somos tudo, somos santos e demônios, somos bonitos, somos feios, somos grandes, somos minhocas. (…) Querem que eu faça uma biografia. Biografia é pra gente que modificou o mundo. (…) A morte está mais próxima (risos). Já fui jovem, de meia-idade e sou velha. Vivi cada coisa no tempo da mãe natureza. Meu pai me dizia: 'Minha filha, aprende com a mãe natureza'. E ela nos ensina tudo mesmo. (...) Estou pronta para morrer. Me preparo todos os dias para isso. A morte é amiga, gente.(…) O melhor da vida não é viver, é conviver. (…) A vida tem que ter magia. (...) Olhar para trás, nunca. Cruz credo. Sinto saudades do futuro. (…) Crianças, conviver é o grande barato da vida. Aproveitem e convivam.”

Nosso cometa da liberdade partiu – como Elke dizia: foi “brincar de outra coisa”...