Sem quaisquer ‘achismos’, eu só penso – e muito. Pensando na realidade em que estou vivente, começo a me enxergar no mundo da tetravó da minha avó. Penso mesmo que a minha avó enxergaria esta realidade atual, mundo ultrapassado, retrógrado, até perigoso de se viver. Por isso, penso, quem se sentiria à vontade mesmo seria a tetravó da minha avó.
Penso que o Brasil não (sobre)vive hoje a retirada da sujeira debaixo do tapete. Quem dera fosse essa coisa digna. Não é, ainda que todos os deuses que surgem queiram nos convencer disso. Observe: o tapete deteriorou, com tantas décadas de corrupção. Não há jeito de remendar. Não há mais tapete (bingo!). Todos contribuímos pra isso – grandes e pequenas corrupções, ou simples conivência, ignorando a realidade. (Não ria: o tapete da história da sua vida também está desgastando)
Afinal, que mundo é esse que faria a tetravó da minha avó se sentir à vontade e confortável? Não tenho resposta(s). Mas não deixo de observar e questionar tudo, todos – primeiramente, eu mesma, que estou mais perto.
Exemplo próximo (a maioria dos brasileiros trabalha): Em novembro de 2017 (logo, logo), a reforma trabalhista será implantada, em todo o Brasil. Não sei por que, mas, sabendo disso, conhecendo a íntegra da Lei nº 13.467 (que trata sobre a dita dura reforma), penso que estamos a um passo de um passado que a maioria prefere ignorar até hoje - bem antes de 1888, ano em que a princesa assinou a lei áurea. Traduzindo o que penso: com a reforma, os patrões terão autoridade absoluta, mascarada de negociação. Resumindo: ou o empregado (escravo mascarado) acata a decisão patronal, ou a fila (dos interessados na vaga) anda (para admissão na empresa). Neste mesmo pacote (saco dos tempos mais antigos e vazio de direitos), ainda tem a famigerada aposentadoria: a partir de novembro deste ano, muitos trabalhadores velhos e cansados estarão (obrigatoriamente) na ativa (sem o merecido descanso da aposentadoria), até a morte, literalmente.
Como se não bastasse, no nosso Brasil, alguém que age como se sentisse deus do trabalho, com o apoio de outro que se acha deus da agricultura, resolveu alterar a definição conceitual de trabalho escravo, para aliviar as penas de quem não tem pena dos trabalhadores em condição de escravidão. Dizem que a alteração da lei atende à dita bancada ruralista, que está por bancar a permanência de (mais) um pau de galinheiro, no coliseu. Daqui a pouco, os deuses do olimpo devem julgar (verbo que tem sido mais força de expressão) se o Brasil vai mesmo retroceder no tempo, lá pelo século XVI. Se isso, de fato, acontecer, vamos reviver os tempos que antecederam as leis do ventre livre e dos sexagenários, até chegarmos, mais uma vez, à abolição, em meio a todo aquele cenário de violência e desrespeito aos direitos fundamentais da pessoa humana, previstos na Constituição (ignorada por tantos): “Art. 5º. Todos são iguais perante à lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. Se quiser saber mais a respeito disso tudo, se informe (ou não), leia e reflita além do que escrevem nas redes sociais – antes tarde que mais tarde.
Tem mais – muito mais. A tetravó da minha avó se sentiria cada vez mais em casa, se vivesse o que estamos vivendo. Todo mundo sabe que, por arrastados e silenciosos séculos, a humanidade (ou parte dela) caminhou, sob o jugo do dedo em riste da igreja católica apostólica romana. Isso até não faz tanto tempo assim – os conservadores da igreja continuam crendo numa ressurreição cada vez mais próxima. Hoje, apodrecidas as viseiras, depois de tanto tempo, se sabe que a inquisição – que de santa não tinha p%*&@ alguma – era apenas a ponta do monstruoso iceberg religioso. A pedofilia continua sendo praticada, sob o manto da fé católica e de seus pregadores (in)fiéis, que teimam em pregar, com o martelo da moral e da ética, que sexo, fora do casamento, é pecado (talvez, por isso, tem tanta gente casando, e praticando sexo casual). Não faz tanto tempo assim, um dos deuses da igreja católica apostólica romana foi ao continente africano, no auge da disseminação da aids, e orientou que ninguém utilizasse preservativo (camisinha). Até esse capítulo da história, sexo era pecado (mortal). “Fé demais não cheira bem”.
Mas tem pior que isso. Sempre tem. “Não há mal que não possa piorar” – não é mesmo?… Pois bem, há algumas décadas, testemunhamos o surgimento e o poder de domínio de uma outra igreja universal: Mãos ao alto (aleluia!), entregue todo dinheiro que tem, fale que eu te escuto, e você enriquece neste paraíso (fiscal), bem longe do céu. Neste quesito religioso, prefiro abster-me, vossa excelência (e os deuses do olimpo empatando jogos).
Aos poucos, o que parecia ser (somente) mais uma igreja tornou-se um monstro feito de ouro, garimpado na mais pura miséria humana. Já no primeiro tempo, um dos deuses chutou uma imagem santificada pela humildade que ainda deseja crer. Era apenas o começo – novamente, eis que surgia outra ponta de iceberg (dessa vez, desconhecido). E a igreja, que nasceu dizendo-se universal, foi dominando o mundo – não o universo -, se instalando em comunidades ignoradas, esquecidas pela humanidade. E esse universo foi se sentindo poderoso, como nunca havia se sentido. A igreja, sempre oportunista, aproveitou para universalizar a tese do crime do sexo. Hoje, parte da humanidade retrocede, seguindo a boiada, e, mais que pecado, considera crime, sexo até nas manifestações artísticas. Não é à toa que, só no Brasil, a “bancada evangélica” tem eleito pastores e fiéis a tantos cargos político-partidários. Por isso, no Congresso, as pautas voltam sempre a girar em torno de “crime do aborto, em quaisquer circunstâncias”, “redução da maioridade penal”, “estatuto do armamento”, e até pena de morte, proposta que, quando menos se espera, volta à baila, num discurso inflamado, “em defesa dos homens de bem”. Tudo isso acontecendo em Brasília, no coliseu em ruínas, e o povo, distraído, consumindo por impulso, fofocando no whatsapp, ateando fogo e disparando armas em escolas, curtindo fotos de bichos engraçadinhos e participando de masturbações pseudointelectuais coletivas, no facebook, ejaculando em ônibus, no metrô, etc e tal. Ainda há os fiéis dos dramas policialescos e novelescos – não saem da frente da televisão, nem por Ato Institucional (6, 7, ou outro número qualquer). O que se percebe é que todo mundo está se organizando – crime organizado, organização de quadrilha, etc etc etc. Não consigo mais sequer imaginar como estaria a tetravó da minha avó, neste mundo, o qual já não sei se seria o dela, ou de algum homo habilis, ou erectus…
São tantos deuses, que o da saúde viu que não podia ficar de fora do retrocesso todo, imposto no Brasil. A concorrência é grande – a cada instante, mais um atraso de vida para os brasileiros. Até quem, no início, aplaudiu com panelas já não tem mais as mãos desocupadas – tenta agarrar o que ainda lhe resta. Pois bem, vamos ao fato: o deus da saúde assinou uma portaria, que entrou em vigor em outubro do ano passado, estabelecendo “inaptidão, por 12 meses, para a doação de sangue, para homens que tenham tido relação sexual com outro homem”. Traduzindo: homossexuais masculinos estão impedidos, há um ano, de doarem sangue, no Brasil. A coisa feia começou a ser julgada no olimpo – daqui a pouco, sai o veredicto. Precisou o deus relator da matéria, no olimpo, esclarecer (que seja definitivamente!) que “orientação sexual não contamina ninguém; preconceito, sim”. Como eu queria ter visto algum deus da anvisa ouvindo isso, coçando a cabeça, para murmurar: “Ah, então tá”…
E ainda tem mais e mais – o teste brasileiro de resistência não acaba. Um gestor paulistinha – que diz não ser político, mas continua em cargo político -, depois do extermínio da cracolândia, sem política pública para atender os dependentes químicos invisíveis, tratou logo de lançar uma tal “farinata”, ração feita a partir de alimentos perto de perder a validade. A intenção do gestor paulistinha é distribuir, goela abaixo, a dita ração aos cidadãos em condição de rua e na merenda escolar da rede municipal de São Paulo. Não deu outra: os moradores de rua não têm defesa, mas famílias dos estudantes já começaram a protestar. No “Primeiro Ato Contra Ração Humana na Merenda de Nossos Filhos”, organizado no vão livre do Masp, havia o manifesto: “O ‘gestor’ chama essa ração humana de farinata. Nós, mães, pais e familiares, chamamos aberração”. O dito paulistinha, que diz não ser político, e não é burro, percebendo a indignação de nutricionistas e autoridades do setor de nutrição (inclusive, internacionais), tratou de desdizer o discurso, informando, agora, que “a farinata será complemento alimentar”. Pasmem: a direção da empresa contratada para o servicinho informou que “já existem 50 toneladas do alimento em estoque”. Uma perguntinha não me sai da cabeça: se seres humanos receberão ração, o que comerão os animais do gestor paulistinha?… Alguém explica (desenha) pra ele que “o Direito Humano à Alimentação Adequada tem duas dimensões: o direito de estar livre da fome e o direito à alimentação adequada”?…
Por todo o país, há deuses (enrustidos) destilando ressentimento e ira, fechando exposições, cerceando liberdade de expressão, em nome “da moral e dos bons costumes”. E ainda temos de saber da existência de um general do exército, que defende a volta dos que nunca foram: os ditadores. A possibilidade de outra intervenção militar, no nosso pobre Brasil, foi citada, três vezes, pelo general saudosista, que proferiu palestra numa loja maçônica, em Brasília.
No meio disso tudo, lembro que, há pouco tempo, Ruth Escobar, a revolucionária das artes cênicas, faleceu. Justamente nesses tempos em que tentam eliminar a memória revolucionária de Ruth Escobar e de tantos outros artistas – como se fosse possível, diante dos fatos históricos que superam decretos. Felizmente, tem muita gente viva, para recontar histórias revolucionárias, onde o nome de Ruth Escobar é guardado sem segredo. Alda Marcantonio, uma das companheiras de luta de Ruth, conta que, no auge da ditadura militar no Brasil, um policial bateu na porta do Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, onde estava acontecendo uma reunião de um dos grupos que enfrentava a ditadura. A própria (Ruth Escobar) o atendeu. O policial repetia que tinha ordem judicial para terminar a reunião. Ruth Escobar – sempre revolucionária – não hesitou, e exigiu mandato judicial, documento que, prontamente, o policial apresentou. Era Ruth Escobar – não podia se dar por vencida. De imediato, a artista revolucionária chamou seu gerente do Teatro, entregou-lhe o mandato. O gerente sumiu da porta, levando o documento, enquanto Ruth Escobar continuava interrogando o policial: O senhor tem mandato judicial? O policial repetia: Entreguei à senhora. Era Ruth Escobar que não desistia de enlouquecer o policial, que só queria continuar cumprindo ordens: O senhor tem mandato judicial? Sem papel, o senhor não entra… e fechou a porta, na cara estarrecida do policial.
Diante do silêncio imposto pela ditadura militar (tempo em que seres humanos foram torturados e mortos, quando não havia bala perdida), no olho do vulcão do medo brasileiro, Ruth Escobar – tinha de ser ela – trouxe diretores, atores e produtores do mundo inteiro, para participarem do Festival Internacional de Artes Cênicas. Nem todos enxergaram: Ruth Escobar – a eterna revolucionária - denunciou, ao universo das artes, a mordaça, a violência e o medo no Brasil. Tudo isso aconteceu nos anos 60 e 70 – e hoje as mulheres travam guerra para garantirem o direito de amamentar em local público… A ordem dos deuses da vez é mesmo uníssona: “Meia volta, volver!”
Com tudo isso acontecendo, no Brasil e no mundo (ninguém está incólume), não acredito que a tetravó da minha avó continue descansando em paz – nem as gerações depois dela.