quinta-feira, 31 de março de 2016

De Onde Moro

Meu amigo, estou escrevendo, de onde moro, por saber que você sabe o que todos nós sabemos. Que ninguém mais me leia, para interpretar que sou isso, sou aquilo. Não sou – nem isso, nem aquilo. Sou contra. Sou a favor. Sou pelo contrário. Só quero viver o nosso tempo de paz, sem retrocesso. Se tem gente que perdeu a memória, muitos livros e museus (e até vítimas) continuam vivos, e muitos outros surgirão, contando, à posteridade, a história que construímos e destruímos hoje. Rebobina! - não funciona (definitivamente). Dizem que as ruas estão abarrotadas de cães raivosos e cegos, de raça ariana - por isso, não posso visitá-lo, meu amigo. Escolho escrever esse email singelo – mais sensato, que correr o risco de telefonar para sua casa, e algum grampeador incauto interceptar nossa amizade. Tenho alimentado traumas - tantos, que deixei até de usar grampos nos cabelos, e estremeço, quando ouço a batida de um martelo. Há alguns dias, tenho procurado, onde moro, as minhas garantias individuais, e não as encontro no lugar seguro e inviolável, onde as guardei. E tudo isso tem, em incerta medida, alterado minha rotina. Nem posso mais sair às ruas, com as cores de roupas que sempre vesti, sob pena de, em poucos minutos, ser julgada, condenada e linchada pelos cães raivosos. Qual será o programa policialesco que eles assistem? São tantos que instigam e aplaudem a violência. De onde moro, escuto vociferarem fascismo e psicopatia, que aprisionam a liberdade de todos os direitos. A tortura psicológica é monstruosa, meu amigo – e eu, semelhante a tantos (maioria), sou cidadã menor. Não sei por que, mas já não me apetece mais coxinhas, nos cardápios desses dias surpreendentes. Na sala de leitura, me alegra a presença da Constituição Federal, que persiste: “por uma sociedade livre, justa e solidária”. Eu, que sou (quase) à toa, tenho me assustado com as notícias de um outro 'deus' – mais poderoso que Têmis, ou Atena, Zeus, Hera, Ares, Artêmis e até Apolo. Lá fora, meu amigo, esgotos borbulham, cada vez mais fétidos, vazando, à revelia e a qualquer hora, o que ninguém sabe, mas, pior, acha saber - por isso, não pensa, nem questiona -, enquanto destila mais ódio. Onde moro, querem domesticar minha subjetividade, enquanto me enxergo impedida de ser objetiva. E eu que aprendi, na escola, que ser juiz é diferente de ser justiceiro (alguém se importa com isso?). Nem sei por que escrevo isso a você, meu amigo, mas pode ser por que sou impopular, e temo destituição (sei lá de onde e do quê). Dia desses, ouvi contarem, pela conservadora janela de vidro poluído, que, ali, na esquina, à esquerda de onde moro, um homem, vítima dos cães raivosos, foi salvo por policiais (tempos estranhos, esses), justamente por que verbalizou a palavra proibida: “discordo”. E ainda dizem que tem tilintar de panelas brilhosas – isso é demais para eu ouvir. Perco o sono, e, quando o encontro, sempre vem acompanhado do mesmo pesadelo: 1964, mutismo desesperador. Quando acordo, onde moro, imploro confirmação do calendário (o susto passou!), e rezo, com urgência urgentíssima, para que nem uma medida coercitiva venha tomar café comigo, sem aviso prévio. Meu amigo, de onde moro, pela janela cada vez mais imunda, posso ver algumas matilhas que perambulam pelas ruas, enroladas em bandeiras suadas de ódio e ressentimento. E tudo isso me faz lembrar o pesadelo que teima em bater, bater, enquanto eu, animal histórico que sou, escolho continuar sonhando (acordada), e acreditar que 1964 já era, os tempos são outros, vivemos o Estado Democrático de Direito. O gol perdeu a bola; o tiro nem saiu pela culatra, que ficou à espera. Nas ruas, “os cães ladram, a caravana passa”. Que o pesadelo sirva de alimento aos cães raivosos, de raça ariana, e me deixe dormir sossegada – e sonhar. Enquanto tudo ameaça, sem direito a defesa, tão perto da minha casa nova e democrática, ainda em construção, fico eu, com a minha única companhia: cálice. Já não bebo nem um gole – a realidade das ruas tem me embriagado tanto, de longe. Que eu acorde logo – na maior ressaca. Que o pesadelo acabe cedo, antes que a palavra justiça seja destroçada pelos cães raivosos, de raça ariana, e vire um palavrão. Que não destruam, meu amigo, sei lá a que pretexto, o que já conseguimos construir juntos, a duras penas, que só manifestavam escarlate. Podem dizer que esqueceram, mas todos lembrarão, sempre, das batidas cadenciadas dos cascos dos cavalos, dos coices e pisoteadas das ferraduras – depois, o toque de recolher (a indignação e a revolta). Que a dita dura realidade, meu amigo, não sobreponha o senso, o bom senso, e a consciência daqueles que pareciam exemplos de tudo isso, antes de começarem inverter os valores, mudarem as leis, com prejulgamentos e atitudes impetuosas, obedecendo a matilha, em troca de aplausos. Amém.

(Aos desinformados: hoje é 31 de março – não (mais) 1964. Basta.)
… e os cães (ainda) vociferam...

Um comentário:

  1. Nara, que saudades de ler seus escritos em voz alta pra você ouvir... emocionante e pesadamente real o que você escreveu... vamos tomar um café um dias desses enquanto podemos?

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