Vivemos tempos estranhos, apesar de a maioria nem refletir sobre isso. Dia desses, num encontro com uma professora de língua portuguesa, perguntei a ela se estava mais fácil ensinar conjugação verbal aos estudantes. Ela respondeu, rapidamente, que não via diferença, e me perguntou o porquê da pergunta. Eu disse a ela que, na realidade atual, só temos conjugado, nas nossas relações, a primeira e a terceira pessoas do plural – eu, tu, ele, vós já não cabem mais nas conversas, principalmente, nas redes sociais.
Hoje, nessa realidade tão banal e descartável, nos tornamos 'nós' e 'eles'. Se não somos nós – somos eles. Nós fazemos vultosas doações, abatidas no imposto de renda – eles querem consumir o que não foi feito para eles. Nós somos os bons, os mocinhos – eles são os maus, os bandidos. Nós, as vítimas – eles, os carrascos. Nós, os éticos – eles, os corruptos. Nós moramos no alto dos prédios da zona sul – eles ocupam áreas de preservação ambiental, no alto dos morros da favela. Nós, os certos – eles, os errados. Nós protegemos os animais e o meio ambiente – eles humilham e até matam aqueles que desfrutam a liberdade de serem quem são, entre quatro paredes. Nós pagamos muito bem as escolas particulares dos nossos filhos – eles reclamam da escola gratuita dos filhos. Nós, os verdadeiros – eles, os hipócritas. Nós defendemos o armamento da sociedade – eles roubam armas e matam. Nós somos contra o aborto – eles maltratam e violentam as crianças, os adolescentes. Nós gastamos muito dinheiro, em shoppings – eles apavoram, nos shoppings, quando fazem “rolezinho”. Nós somos cautelosos – eles são covardes. Nós somos brancos – eles são morenos, quase pretos. Nós queremos pena de morte, enquanto eles superlotam as prisões brasileiras. Nós refletimos, para, depois, fazermos comentários nas redes sociais – eles criam boatos e intrigas, ofendem, nas (mesmas) redes sociais. Nós fazemos dietas – eles jogam comida no lixo. Nós bebemos, dirigimos, mas nos cuidamos – eles bebem e atropelam, matam. Nós não queremos saber de política – eles continuam votando nos que fazem a pior política. Nós somos todos heterossexuais performáticos – eles são todos pedófilos, estupradores, “viados” e “sapatonas” sem vergonha. Nós pagamos mal pessoas incapacitadas para cuidarem dos nossos filhos – eles abandonam os filhos, em latas de lixo. Nós mandamos matar desafetos – eles matam quem não conhecem, a troco de 50 reais. Nós vamos à missa, todos os domingos – eles pecam, a semana inteira. Nós somos enganados, quando compramos produtos de receptadores – eles assaltam e roubam. Nós, seres humanos que somos, matamos, em nome do nosso 'deus' – eles matam, sem fé alguma, os seres humanos. Nós exercitamos o senso criativo – eles mentem. Nós pensamos, primeiro, em nós mesmos – eles só pensam neles mesmos. Nós perdoamos, mas não esquecemos, e até nos vingamos – eles não perdoam. Nós participamos de campanhas contra a violência contra a mulher – eles espancam, e ameaçam as mulheres. Nós não temos preconceito – eles são contra os diferentes (deles). Nós enxergamos, sempre, o bem – eles só praticam o mal. Nós 'furamos' filas, por que estamos com pressa – eles não respeitam filas. Nós reclamamos dos impostos sobre produtos importados – eles exportam mão de obra barata. Nós compramos todos os tipos de drogas dos traficantes – eles, os criminosos, vendem as drogas. Nós somos imparciais, e só noticiamos a verdade absoluta – eles são tendenciosos e cheios de más interpretações e intenções. Nós oferecemos desconto, nos produtos superfaturados – eles superfaturam os preços dos produtos.
De repente, o caldo entorna, e nós nos tornamos eles – para eles, obviamente. Às vezes, somos maioria – não demora, somos minoria. Equação duvidosa. E eu continuo sem entender esses muros (invisíveis e sólidos) erguidos a qualquer momento, em qualquer lugar...
muito legal
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