O que ainda não compreendo é como uma criatura, que esfacelou-se em tantos cacos de espelho unico, Pessoa(s) ainda continua sendo razão de despedaçadas criticas – as mais variadas, e inimaginaveis. Talvez, por falta de mais elementos (será?), alguns criticos questionam até a opção sexual de Fernando Pessoa(s). A propria sobrinha-neta de Pessoa(s) Manuela Nogueira, em entrevista publicada, opinou que, nos escritos de Álvaro de Campos, Fernando Pessoa apresentou “a homossexualidade de maneira explicita”. A sobrinha-neta (Maria da Graça Queiroz) de Ophélia Queiroz, conhecida, até hoje, como a “unica namorada” de Pessoa(s), afirmou, em entrevista divulgada, não acreditar que Fernando Pessoa(s) tenha morrido virgem. Ela vai além nas conjecturas: “Naquela epoca, o escritor era considerado homossexual. Só depois da morte dele, em 1937, meu pai – Carlos Queiroz – lançou o livro com as cartas apaixonadas de Fernando Pessoa para minha tia-avó Ophélia”. O filho do barbeiro que aparava o bigode de Pessoa(s), diariamente, saiu em defesa publica da heterossexualidade do escritor de unicidade multipla. Conforme Antônio Seixas, que era criança, nos tempos de Pessoa(s), “havia uma moradora do primeiro andar, onde morava o escritor, que dizia ser namorada dele”.
Se Fernando Pessoa(s) morreu virgem, se era homossexual, se, de fato, teve envolvimento amoroso com Ophélia Queiroz – isso tudo eu não sei. O que sei já me basta, para lamentar o que as pessoas continuam fazendo com Pessoa(s). Na falta do que mais dizer, comentar, escrever, conjecturam imaginações cada vez mais férteis, que em nada assemelham-se aos delirios de Pessoa(s), homem lucido, que, para suportar “um tanto mais” a vida, bebia e fumava, todos os dias e noites, sem conseguir atenuar a dor do existir.
Vou adiante, na contramão dessa gente que ainda busca saber “quem surgiu primeiro: o ovo ou a galinha”. E se Pessoa(s) fosse homossexual, ou tivesse morrido virgem?... E se Pessoa(s) nem tivesse existido, humanamente, e fosse criatura de um criador louco, desvairado, com personalidades multiplas de Ricardo Reis, Álvaro de Campos, Bernardo Soares, Alberto Caeiro, Maria José, Charles Robert Anon, ou qualquer outro nome de identificação que o valha?... E se?... O que mudaria os escritos dessa alma inquieta e febril, que, na ansia de abraçar todas as almas, multiplicou-se e refletiu-se em tantos cacos, até hoje ignorados?...
Por outro lado, o escritor português José Blanco reconhece que, no Brasil, há maior interesse por Fernando Pessoa(s) que em Portugal. A propria “directora” da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, Inês Pedrosa, reconheceu, em visita ao Brasil, que os brasileiros valorizam muito mais a obra de Pessoa(s), se comparado aos portugueses. Isso, sim, para mim, é fator relevante, pois trata dos meus contemporaneos – da alma brasileira.
Socialmente, Pessoa(s) teve vida bastante comum. Traduzia cartas, trabalhando em casas do comercio português. Sofria privações, pois o que ganhava pelas traduções não garantia-lhe sequer refeição diaria. Por isso, tinha sempre de “comprar fiado” seus cigarros, fosforos e a cotidiana aguardente que carregava na pasta, depois de tomar um copo no bar. Inclusive, numa dessas ocasiões, um amigo dele fotografou-o “em flagrante delitro”, como escreveu Pessoa(s) à Ophélia, enviando-lhe copia da fotografia tomando mais um copo. Todas as noites, como deixou registrado em seus diarios, Pessoa(s) reunia-se, em bares e restaurantes, com amigos da literatura e da boemia, a quem também pedia dinheiro emprestado.
Em 1912, Fernando Pessoa(s) começa trabalhar com o poeta e prosador português Mário de Sá-Carneiro, a partir do lançamento da Revista “Orpheu”, onde ambos escreviam. A amizade tornou-se solida e importante, como pode-se ler, na troca de cartas entre Pessoa(s) e Sá-Carneiro, que mudou-se para Paris.
Eis uma das tantas cartas de Pessoa(s) ao grande amigo:
“Carta a Mário de Sá-Carneiro
em 14 de Março de 1916
Escrevo-lhe hoje por uma necessidade sentimental - uma ânsia aflita de falar consigo. Como de aqui se depreende, eu nada tenho a dizer-lhe. Só isto - que estou hoje no fundo de uma depressão sem fundo. O absurdo da frase falará por mim.
Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro. Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno. A margem de lá do rio nunca, enquanto é a de lá, é a de cá; e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento. Há barcos para muitos portos, mas nenhum para a vida não doer, nem há desembarque onde se esqueça. Tudo isto aconteceu há muito tempo, mas a minha mágoa é mais antiga.
Em dias da alma como hoje eu sinto bem, em toda a minha consciência do meu corpo, que sou a crianca triste em quem a vida bateu. Puseram-me a um canto de onde se ouve brincar. Sinto nas mãos o brinquedo partido que me deram por uma ironia de lata. Hoje, dia catorze de Marco, às nove horas e dez da noite, a minha vida sabe a valer isto.
No jardim que entrevejo pelas janela caladas do meu sequestro, atiraram com todos os baloucos para cima dos ramos de onde pendem; estão enrolados muito alto; e assim nem a ideia de mim fugido pode, na minha imaginacão, ter baloucos para esquecer a hora.
Pouco mais ou menos isto, mas sem estilo, é o meu estado de alma neste momento. Como à veladora do “Marinheiro” ardem-me os olhos, de ter pensado em chorar. Dói-me a vida aos poucos, a goles, por interstícios. Tudo isto está impresso em tipo muito pequeno num livro com a brochura a descoser-se.
Se eu não estivesse escrevendo a você, teria que lhe jurar que esta carta é sincera, e que as coisas de nexo histérico que aí vão saíram espontâneas do que me sinto. Mas você sentirá bem que esta tragédia irrepresentável é de uma realidade de cabide ou de chávena - chia de aqui e de agora, e passando-se na minha alma como o verde nas folhas.
Foi por isto que o Príncipe não reinou. Esta frase é inteiramente absurda. Mas neste momento sinto que as frases absurdas dão uma grande vontade de chorar.
Pode ser que, se não deitar hoje esta carta no correio amanha, relendo-a, me demore a copiá-la à máquina, para inserir frases e esgares dela no “Livro do Desassossego”. Mas isso nada roubará à sinceridade com que a escrevo, nem à dolorosa inevitabilidade com que a sinto.
As últimas notícias são estas. Há também o estado de guerra com a Alemanha, mas já antes disso a dor fazia sofrer. Do outro lado da Vida, isto deve ser a legenda duma caricatura casual.
Isto não é bem a loucura, mas a loucura deve dar um abandono ao com que se sofre, um gozo astucioso dos solavancos da alma, não muito diferentes destes.
De que cor será sentir?
Milhares de abracos do seu, sempre muito seu,
Fernando Pessoa
P.S. - Escrevi esta carta de um jacto. Relendo-a, vejo que, decididamente, a copiarei amanha, antes de lha mandar. Poucas vezes tenho tão completamente escrito o meu psiquismo, com todas as suas atitudes sentimentais e intelectuais, com toda a sua histero-neurastenia fundamental, com todas aquelas intersecções e esquinas na consciência de si-próprio que dele são tao características…
Você acha-me razão, não é verdade?”
Em 26 de abril de 1916, Mário de Sá-Carneiro, com 26 anos, suicida-se, ingerindo cinco frascos de arseniato de estricnina. Fernando Pessoa(s) – alma dolorida e sozinha – escreve, então:
“Sá Carneiro
Nesse número do Orpheu que há-de ser feito
Com rosas e estrelas em um mundo novo.
Nunca supus que isto que chamam morte
Tivesse qualquer espécie de sentido...
Cada um de nós, aqui aparecido,
Onde manda a lei e a falsa sorte,
Tem só uma demora de passagem
Entre um comboio e outro, entroncamento
Chamado o mundo, ou a vida, ou o momento;
Mas, seja como for, segue a viagem.
Passei, embora num comboio expresso
Seguisses, e adiante do em que vou;
No términus de tudo, ao fim lá estou
Nessa ida que afinal é um regresso.
Porque na enorme gare onde Deus manda
Grandes acolhimentos se darão
Para cada prolixo coração
Que com seu próprio ser vive em demanda.
Hoje, falho de ti, sou dois a sós.
Há almas pares, as que conheceram
Onde os seres são almas.
Como éramos só um, falando! Nós
Éramos como um diálogo numa alma.
Não sei se dormes [...] calma,
Sei que, falho de ti, estou um a sós.
É como se esperasse eternamente
A tua vida certa e conhecida
Aí em baixo, no café Arcada —
Quase no extremo deste [...]
Aí onde escreveste aqueles versos
Do trapézio, doriu-nos [...]
Aquilo tudo que dizes no «Orpheu».
Ah, meu maior amigo, nunca mais
Na paisagem sepulta desta vida
Encontrarei uma alma tão querida
Às coisas que em meu ser são as reais.
[...]
Não mais, não mais, e desde que saíste
Desta prisão fechada que é o mundo,
Meu coração é inerte e infecundo
E o que sou é um sonho que está triste.
Porque há em nós, por mais que consigamos
Ser nós mesmos a sós sem nostalgia,
Um desejo de termos companhia —
O amigo como esse que a falar amamos.”
Entre tantos, Fernando Pessoa(s) – em tudo, em todos:
“Passei entre eles estrangeiro porém nenhum viu que eu o era. Vivi entre eles espião, e ninguém, nem eu, suspeitou que eu o fosse. Todos me tinham por parente: nenhum sabia que me haviam trocado à nascença. Assim fui igual aos outros sem semelhança, irmão de todos sem ser da família.
Vinha de prodigiosas terras, de paisagens melhores que a vida, mas das terras nunca falei, senão comigo, e das paisagens, vistas se sonhava, nunca lhes dei notícia. Meus passos eram como os deles nos soalhos e nas lajes, mas o meu coração estava longe, ainda que batesse perto, senhor falso de um corpo desterrado e estranho.
Ninguém me conheceu sob a máscara da igualha, nem soube nunca que era máscara, porque ninguém sabia que neste mundo há mascarados. Ninguém supôs que ao pé de mim estivesse sempre outro, que afinal era eu. Julgaram-me sempre idêntico a mim.
Abrigaram-me as suas casas, as suas mãos apertaram a minha, viram-me passar na rua como se eu lá estivesse; mas quem sou não esteve nunca naquelas salas, quem vivo não tem mãos que outros apertem, quem me conheço não tem ruas por onde passe, a não ser que sejam todas as ruas, nem que nelas o veja, a não ser que ele mesmo seja todos os outros.
Vivemos todos longínquos e anónimos; disfarçados, sofremos desconhecidos. A uns, porém, esta distância entre um ser e ele mesmo nunca se revela; para outros é de vez em quando iluminada, de horror ou de mágoa, por um relâmpago sem limites; mas para outros ainda é essa a dolorosa constância e quotidianidade da vida.
Saber bem quem somos não é connosco, que o que pensamos ou sentimos é sempre uma tradução, que o que queremos o não quisemos, nem porventura alguém o quis - saber tudo isto a cada minuto, sentir tudo isto em cada sentimento, não será isto ser estrangeiro na própria alma, exilado nas próprias sensações?
Mas a máscara, que estive fitando inerte, que falava à esquina com um homem sem máscara nesta noite de fim de Carnaval, por fim estendeu a mão e se despediu rindo. O homem natural seguiu à esquerda, pela travessa a cuja esquina estava. A máscara - dominó sem graça - caminhou em frente, afastando-se entre sombras e acasos de luzes, numa despedida definitiva e alheia ao que eu estava pensando. Só então reparei que havia mais na rua que os candeeiros acesos, e, a turvar onde eles não estavam, um lugar vago, oculto, mudo, cheio de nada como a vida...”
“Sinto o tempo com uma dor enorme. É sempre com uma comoção exagerada que abandono qualquer coisa. O pobre quarto alugado onde passei uns meses, a mesa do hotel de província onde passei seis dias, a própria triste sala de espera da estação de caminho de ferro onde gastei duas horas à espera do comboio - sim, mas as coisas boas da vida, quando as abandono e penso, com toda a sensibilidade dos meus nervos, que nunca mais as verei e as terei, pelo menos naquele preciso e exacto momento, doem-me metafisicamente. Abre-se-me um abismo na alma e um sopro frio da hora de Deus roça-me pela face lívida.
O tempo! O passado! Aí algo, uma voz, um canto, um perfume ocasional levanta em minha alma o pano de boca das minhas recordações... Aquilo que fui e nunca mais serei! Aquilo que tive e não tornarei a ter! Os mortos! Os mortos que me amaram na minha infância. Quando os evoco, toda a alma me esfria e eu sinto-me desterrado de corações, sozinho na noite de mim próprio, chorando como um mendigo o silêncio fechado de todas as portas.”
A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.
Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.
Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.
Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.
Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
No amontoado de papéis escritos, rabiscados e guardados, Fernando Pessoa(s) deixou definitivamente desenhado o mapa astral dele, predestinando a propria morte para o mês de maio de 1935. A morte chegou-lhe com atraso, em final de novembro de 1935. Talvez, precisou (a morte) de mais tempo, para fazer calar Bernardo Soares, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro, e tantos outros cacos de um só espelho humano, que ainda corta e tem cortada a alma - sempre em pedaços.