segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Fernando Pessoa(s) – Dizem por aí

O Sono

- Fernando Pessoa -

Voz: Helena Antoun

Fumava quatro maços de cigarro por dia. Frequentava o bar do Trindade, onde, além de comprar cigarros e fosforos, diariamente, tomava seu costumeiro copo de aguardente, a qual também era reposta, na garrafa vazia que sempre carregava na surrada pasta que utilizava ao sair. Na maioria das vezes, ficava devendo, pois não tinha dinheiro regularmente. Por isso, estava sempre pedindo dinheiro emprestado aos amigos, ou “fiado”, principalmente nos bares. Esse era Fernando Pessoa(s), homem de vida pacata, poucos amigos, grande estudioso da literatura universal e das ciencias ocultas. Exercicia a função de tradutor, em alguns escritorios comerciais de Lisboa. Era ele quem traduzia cartas, ganhando algum dinheiro – sempre insuficiente à propria sobrevivencia. Um ano antes de morrer, Fernando Pessoa(s) recebeu, como premio, a publicação do unico livro – “Mensagem” (de exaltação nacionalista) -, classificado em segundo lugar, no “Concurso Antero de Quental”.
Lendo e relendo a vida de Pessoa(s), penso que ele, com todo cabedal de cultura e inteligencia, poderia ter sido renomado homem de negocios, em Portugal. Se quisesse, Pessoa(s) poderia ter feito coleções de fortunas. Não o fez – talvez, por que as ambições dele fossem maiores, ou menores, ou simplesmente outras (não importa). Pelo que li sobre a vida de Pessoa(s), ele não parecia querer assumir compromissos e responsabilidades humanos, que – talvez – o atrelassem à mediocridade do existir. Parecia ter compromisso e responsabilidade somente com os proprios escritos – quando deixava-se levar pela madrugada, banhando-se nas entranhas dos seus heteronimos.
Indo adiante, lamento saber que, até hoje, muitos familiares de Fernando Pessoa(s), incluindo até parentes da ‘namoradinha Ophélia’, continuem ganhando dinheiro (traduzindo: “faturando em cima”), com a publicação dos escritos dessa alma indecifravel, como o é toda alma humana. Se Pessoa(s) viveu sempre à beira da miseria, descendentes dele parecem ter descoberto a “mina de ouro”: recebem direitos autorais, por todas as obras publicadas e traduzidas, depois da morte dele, obviamente.
Na minha insignificante opinião, a obra de todo artista – das mais diversas e de todas as artes – deveria ser “patrimonio universal” – assim como tratam a cidade historica de Ouro Preto (MG), o Centro Histórico de Salvador (BA), ou o Parque Nacional da Serra da Capivara (PI), todos respeitados como “patrimonios da humanidade”. Também, as obras artisticas deveriam ser patrimonio – nada de serem consideradas herança, espolio, ou causa de briga de familia. E ponto final.
Muito se escreve e se fala sobre Fernando Pessoa(s). Há, inclusive, documentarios (muito bem vendidos, aliás, em dvds) que vão além dos escritos de Pessoa(s). Já assisti entrevistas com familiares de Fernando Pessoa(s), e até com o filho do barbeiro que aparava o reconhecido bigode do escritor português. Nem pretendo deter-me em relatar essas entrevistas. As lembranças – de todos eles, que, na tenra infancia, conviveram (?) com Pessoa(s) – são riquissimas em detalhes, fato que eu admiro, pois jamais pensei que se pudesse reter tanto na memoria. Sabendo disso agora, eu ouso imaginar que, quando gravida de mim, minha mãe tenha sonhado visita a Lisboa, nos tempos de Pessoa(s), e até conhecido aquele homem comum, sentado no bar, silencioso, olhando o fundo de um copo vazio, com um cigarro aceso entre dedos amarelados – minha memoria mais antiga (e saudosa) do que não vivi. Como Fernando Pessoa(s) está morto – quem poderia contestar, senão ele?...
Em outubro deste ano, o diretor João Botelho lançou, com extremo sucesso, “O Filme do Desassossego”, baseado na obra “Livro do Desassossego”, de Fernando Pessoa(s), com a ‘mascara’ de Bernardo Soares. Ainda não tive a oportunidade de assisti-lo, o que (torço) não deve demorar acontecer. Em uma hora e meia, Botelho apresenta fragmentos de Pessoa(s) – sonhos, inquietações e desatinos. Bernardo Soares parece ser o mais proximo daquele que escreveu: “Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me”.
Um dos tantos livros que li é “Fernando Pessoa – Escritos Autobiograficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal” (edição e posfácio de Richard Zenith, com a colaboração de Manuela Parreira da Silva e traduções de Manuela Rocha). Nos diarios mantidos por Pessoa(s), muitas vezes escreve em inglês e francês, sendo a maior parte dos escritos em português. Por mais de dez anos (infância à adolescencia), Fernando Pessoa(s) viveu em Durban (África do Sul), onde aprendeu inglês e francês. Aos 17 anos, retornou – sem a mãe, o padrasto e os irmãos – a Portugal.
Nos diarios de Pessoa(s), o leitor encontra uma alma lucida – não só das ‘coisas humanas’, mas da propria existencia do nada. Ficam, aqui, alguns desses registros feitos por ele, fragmentos compilados em “Fernando Pessoa – Escritos Autobiográficos, Automáticos e de Reflexão Pessoal”:

“Um plano geral de vida deve implicar, em primeiro lugar, a conquista de uma certa estabilidade financeira. Estabeleci como limite mínimo necessário para a coisa humilde a que chamo estabilidade financeira cerca de sessenta dólares, quarenta para as coisas necessárias e vinte para as coisas supérfluas da vida. A forma de o alcançar é adicionar aos trinta e um dólares pagos pelos dois escritórios, outros vinte e nove dólares, cuja origem tem ainda de ser determinada. Em rigor, só para viver, cinquenta dólares chegariam, pois tomando trinta e cinco como base necessária, quinze cobririam o resto.
A coisa essencial que vem a seguir é arranjar uma casa onde haja bastante espaço, uma boa área e bem distribuída, para arrumar todos os meus papéis e livros na devida ordem; e tudo isto não tendo eu grande possibilidade de me mudar dentro em breve. O mais fácil, aparentemente, seria alugar eu próprio uma casa – por uns oito ou, no máximo, nove dólares – e aí viver à vontade, mandando que lá me levassem o jantar (e o pequeno-almoço) todos os dias, ou algo do género. – Mas seria isto inteiramente conveniente?”

“Sou a sombra de mim mesmo, à procura daquilo de que é sombra.
Paro às vezes à beira de mim próprio e pergunto-me se sou um doido ou um mistério muito misterioso.”

“25 de julho de 1907:
Na minha família não há compreensão do meu estado mental – não, nenhuma. Riem-se de mim, zombam de mim, não me acreditam; dizem que desejo ser alguém extraordinário. Nada fazem para analisar o desejo de ser extraordinário. Não podem compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário apenas há a diferença de se acrescentar consciência a esse desejo. É o mesmo que me acontecia brincando com soldadinhos de chumbo aos sete e aos catorze anos de idade; no primeiro caso eles eram coisas, no segundo, coisas e brinquedos ao mesmo tempo; todavia, o impulso para brincar com eles persistia, e esse era o estado psíquico real, fundamental.”

“31/3/1913 (2ª feira):
Para a Baixa não muito tarde. A meio do dia encontrei o Coelho. Andei de automóvel até às 6 horas com ele; não fui aos escritórios dos Lavados. O Coelho emprestou 2.000 réis. Para casa.”
“Cerca-me um vazio absoluto de fraternidade e de afeição. Mesmo os que me são afeiçoados não me são afeiçoados; estou cercado de amigos que não são meus amigos e de conhecidos que não me conhecem.
Sinto frio na alma; não sei com que me agasalhar. Para o frio da alma não há manta nem capa. Quem o sente não se esquece.
Quer isto dizer que não tenho verdadeiros amigos? Não; eu tenho-os; mas não são meus amigos verdadeiros.
Ai daqueles que foram tocados do transcendental e a quem tudo dói por frio, inexpressivo e distante.”

“Se eu pudesse dedicar-me a qualquer coisa – a um ideal, a um canário, a um cão, a uma mulher, a uma investigação histórica, à solução impossível dum problema gramatical inútil... Então, sim, talvez fosse feliz. Esses nadas seriam coisas para mim. Mas nada é coisa para mim, senão as ficções dos meus sonhos, e essas são nadas por direito próprio. Ainda quando tenho o prazer de os sonhar, tenho a amargura de conhecer que os sonho.”

“12/11/1915:
Dia incaracterístico, mais desagradável que outra coisa. Fiz uma coisa impulsiva e tola comprando um livro, quando pouco dinheiro me resta. Fui ao escritório do Franco para fazer apenas uma carta...”

“14/11/1915:
(...) Fui para casa com o Pacheco, muito aprazivelmente; em casa sem jantar, porque não tinha dinheiro; mas quase não me ralei com isso, porque tinha bebido algum vinho na exposição de Pedro de Lima.”

“15/11/1915:
(...) Entre as 2 e as 4 da tarde recebi inesperadamente 1 dólar e meio do Lomelino por lhe ter passado à máquina as traduções.”

“26/11/1915:
(...) Tive por três vezes, durante o dia e a noite, acessos de uma forma curiosa de tonturas – de género físico abstracto; mas estive todo o dia lúcido. Fumei muito e bebi muito café. O Mário deu-me algum dinheiro, que foi de utilidade passageira, mas isto é mau. O dia foi intensamente agradável, excepto ter sido perdido. À noite, conversa longa e muito agradável com o Lenardo Coimbra.”

“13-6-1916:
Cheguei, assim, ao meu 28º aniversário sem nada ter feito na vida – nada na vida, nas letras ou na minha própria individualidade. Até agora conheci o insucesso absoluto. Durante quanto tempo, ai de mim!, terei de conhecê-lo ainda?
Quanto mais examino a minha consciência, menos me absolvo do nada que é a minha vida.
Que coisa horrível é esta que tanto me atrasou?
A minha leitura deficiente, a minha falta de espírito prático.”

Um comentário:

  1. Nara
    Ninguém é doido sem a doidice e doidice seria não escrever(dizer) o que se acha, imagina ou sonha. Só nós cabemos em nós mesmos; o resto são suposições dos outros. Gostei do seu site e visitá-lo-ei (como diria Pessoa) em busca de mais dizeres.
    Antônio Chibante

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