sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O silencio de Chaya bat Pinkhas

Clarice Lispector nasceu Haia Pinkhasovna Lispector, em 10 de dezembro de 1920, em Chechelnyk - lugarejo sumido no mapa da Ucrânia -, e morreu no Rio de Janeiro, em 9 de dezembro de 1977 (talvez, fechando o ciclo da propria vida). Em sua lapide, escrita em hebraico, o nome oculto: Chaya bat Pinkhas (Chaya filha de Pinkhas).
Trinta e três anos depois da morte dela, muito, e cada vez mais, se fala, se escreve sobre Clarice Lispector. Até eu já ousei postar, neste blog, minha tentativa de desmitificá-la – ela, que reclamava do mito que fizeram dela, o que a afastava das pessoas.
Depois de tanto ler e reler Clarice, e ler e reler sobre Clarice, chego pensar que não existe alma que (ainda) se revele tanto, feito ela. Em cada frase, a propria Chaya bat Pinkhas se manifesta. Foi Haia Pinkhasovna Lispector quem escreveu: “Me deram um nome e me alienaram de mim” (em Um Sopro de Vida). "Há um silencio dentro de mim. E esse silencio tem sido a fonte de minhas palavras." – escrito por ela, também. Em cada frase, uma revelação. Os leitores (na maioria), até hoje, parecem deter-se justamente nas palavras intrinsecas de Clarice, e esquecem de "olhar ao redor” (como ela mesma escreveu), onde paira a alma de Chaya bat Pinkhas – simplicidade ingenua, desamparada.
Se estivesse viva, Clarice Lispector estaria completando, neste 10 de dezembro, noventa anos. Quem sabe, até hoje, ela não entendesse o mito criado, a partir da sua escrita considerada “hermetica”. “Sou tão simples como Bach” – disse ela. Talvez, com noventa anos, Clarice continuasse sentindo medos desconhecidos, e ainda estremecesse, diante de grandes plateias. Quem sabe, ainda não tivesse compreendido o que ela mesma escreveu, há tanto tempo: “O Ovo e a Galinha” (lido pela propria autora convidada, num Congresso sobre Bruxaria).
Noventa anos depois, Chaya filha de Pinkhas ainda vive e revive o assombro humano – extase!... Há noventa anos, Haia Pinkhasovna Lispector continua – incognita – inquietando almas, em tantos idiomas, em países que Clarice sequer conheceu. A alma escritora desnuda-se – entrega-se – sempre, diante de mais uma alma leitora. A inquietação permanece viva – pulsando e fazendo pulsar o desconhecido que tanto tememos...

Reproduzo, a seguir, o depoimento de Ferreira Gullar, sobre Clarice, no livro “Clarice na Cabeceira”, organizado por Teresa Montero:

“Meu primeiro encontro com Clarice Lispector foi numa tarde de domingo, na casa da escultora Zélia Salgado, em Ipanema, creio que em 1956. Eu havia lido, quando ainda vivia em São Luís, o seu romance ‘O Lustre’, que me deixara impressionado, pela atmosfera estranha e envolvente. Mas a impressão que me causou sua figura de mulher foi outra: achei-a linda e perturbadora. Nos dias que se seguiram, não conseguia esquecer seus olhos oblíquos, seu rosto de loba com pômulos salientes.
Voltei a encontrá-la, pouco tempo depois, no ‘Jornal do Brasil’, durante uma visita que fez à redação do ‘Suplemento Dominical’. Conversamos e rimos, mas não voltamos a nos ver, no intervalo de uns dez anos. De fato, só voltei a encontrá-la, logo após voltar do exílio, em 1977. Ela ligou para minha casa: queria entrevistar-me para a revista ‘Fatos e Fotos’, para a qual colaborava naquela época.
Clarice já era então uma mulher de quase 60 anos, marcada por acidente, que resultara em sérias queimaduras que lhe deixaram marcas na mão direita. Já quase nada tinha da jovialidade de antes, embora continuasse perturbadora, em sua natural dramaticidade. Depois de ouvir dela algumas palavras carinhosas, decidi revelar-lhe como me fascinara em nosso primeiro encontro. ‘Você era linda, tão linda que saí dali apaixonado’. ‘Quer dizer que eu 'era' linda?’ ‘E ainda é’, apressei-me em afirmar.
Terminada a entrevista , despedimo-nos carinhosamente, mas, no dia seguinte, ela ligou de novo. Queria encontrar-me para conversar. Fui até sua casa, no Leme, e de lá fomos caminhando até a Fiorentina, que ficava perto.
Lembro-me que Glauber Rocha , vendo-nos ali, veio sentar-se em nossa mesa, e começou a elogiar o governo militar. Clarice me olhava com espanto, sem entender. Ele, depois daquele discurso fora de propósito, mudou de mesa.
‘Ele veio provocar você’, disse Clarice. ‘Com que intenção falou essas coisas? Glauber agora cismou de defender os milicos. É piração’.
Depois dessa noite, voltei a vê-la num encontro que ela promoveu em sua casa com alguns amigos, entre os quais Fauzi Arap, José Rubem...
Foi a última vez que a vi. A roda viva daqueles tempos me arrastou para longe dela, em meio a problemas de toda ordem, crises na família, filhos drogados, clínicas psiquiátricas. De repente, soube que ela havia sido internada num hospital, em estado grave. Localizei o hospital, telefonei para o seu quarto, e acertei com a pessoa que me atendeu ir visitá-la no dia seguinte. Mas, ao chegar à redação do jornal, antes de sair para a visita, a telefonista me passou um recado: ‘Clarice pede ao senhor que não vá vê-la no hospital. Deixe para visitá-la quando ela voltar para casa’. E se ela não voltasse mais para casa? Dobrei o papel com o recado, e guardei-o no bolso, desapontado.
Àquela noite, quando contei o ocorrido a minha mulher, ela explicou: ‘Clarice, vaidosa como era, não queria que você a visse no estado em que estava’. Pode ser, mas, de qualquer forma, até hoje lamento não ter podido vê-la uma última vez.
Dois ou três dias depois do recado, ela morria. Ao sair do banho, pela manhã, alguém me informou: ‘Clarice Lispector morreu’. De viagem marcada para São Paulo, entrei num táxi que me levou pela Lagoa Rodrigo de Freitas. Não poderia ir a seu sepultamento. O táxi corria dentro de uma manhã luminosa, enquanto a brisa balançava alegremente os ramos das árvores. Clarice morrera’ e a natureza a ignorava. No avião, escrevi um poema falando nisso (Que mais poderia fazer?):

Morte de Clarice Lispector
Ferreira Gullar

Enquanto te enterravam no cemitério judeu
De S. Francisco Xavier
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
E as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós.

Alguns meses atrás, quando aceitei fazer a curadoria da exposição sobre ela, no Museu da Língua Portuguesa, todas essas lembranças me acudiram. Ia ser bom voltar a pensar nela, reler seus livros, pois é neles e só neles que é possível reencontrá-la agora’ e nunca naquele saárico túmulo do Cemitério Israelita do Caju, aonde’ certo dia, sob sol escaldante, fui, com Cláudia Ahimsa, visitá-la. Não havia Clarice nenhuma’ sob aquela laje de pedra, sem flores. E não havia, porque, de fato, o que Clarice efetivamente foi, o que fazia dela uma pessoa única e exasperada, era sua patética entrega ao insondável da existência - e a necessidade de escrever, de tentar incansavelmente dizer o indizível, mas certa de que, ao torná-lo dizível, o dissiparia.
Não obstante, isso era tudo o que valia a pena fazer na vida, conforme afirmou: ‘Quando não escrevo, estou morta’.
Em compensação, quando a lemos, ressuscita.”

A atriz Beth Goulart é responsavel pelos trabalhos de adaptação, interpretação e direção da peça “Simplesmente Eu, Clarice Lispector”. É de Beth Goulart o seguinte depoimento:
“O que me levou a fazer Clarice Lispector no teatro foi o mistério do espelho, a identificação que sinto por ela. A vontade de trazer mais luz sobre esta mulher que revolucionou a literatura brasileira, redimensionou a linguagem, falando do indizível, com a delicadeza da música, usando a escrita como uma revelação, buscando o som do silencio, ou fotografar o perfume. ‘A arte é o vazio que a gente entendeu’, diz Clarice.
Quero partir de mim mesma, para refletir a profundidade dessa mulher que conhece o segredo das palavras e suas dimensões. O questionamento é a busca constante do artista, diante de sua escolha. Como ela, eu gosto de intensidades.
Há dois anoss mergulhei num processo de pesquisas para escrever este roteiros lendo tudo o que podia de sua obra e livros biográficos. Fiz dois workshops com Daisy Justus, uma psicanalista especializada em Clarice Lispector, que analisa sua obra, sob a ótica da psicanálise. Vi e ouvi tudo o que podia sobre ela, suas entrevistas, fotos, o depoimento no MIS, a entrevista póstuma na TV Cultura, enfim, me tornei uma esponja de tudo o que se referia a ela.
Neste olhar apaixonado, escolhi sua obra para recontá-la. Construí um corpo narrativo, com trechos de entrevistas, depoimentos e correspondências que preparam os personagens que irão se apresentar ao público, como desdobramentos dela mesma. Os temas abordados são reflexões sobre criação, vida e morte, Deus, cotidiano, palavra, silencio, solidão, arte, loucura, amor, inspiração, aceitação e entendimento.
Clarice é muito pessoal em seus escritos, e todos os seus personagens têm algo de si mesma. Acho que Joana, de ‘Perto do Coração Selvagem’, talvez seja a mais parecida com sua essência criativa e indomável. Ana, do conto ‘Amor’, é a dona de casa e mãe dedicada que Clarice certamente foi. Lóri, de ‘Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres’, vive em cena as descobertas do amor, e a mulher do conto ‘Perdoando Deus’ é uma bem humorada auto-critica”.

Para terminar mais uma homenagem à alma de Chaya bat Pinkhas, que não silencia, recorro a Drummond, que escreveu simplesmente:

"Visão de Clarice Lispector
Carlos Drummond de Andrade

Clarice,
veio de um mistério, partiu para outro.

Ficamos sem saber a essência do mistério.
Ou o mistério não era essencial,
era Clarice viajando nele.

Era Clarice bulindo no fundo mais fundo,
onde a palavra parece encontrar
sua razão de ser, e retratar o homem.

O que Clarice disse, o que Clarice
viveu por nós em forma de história
em forma de sonho de história
em forma de sonho de sonho de história
(no meio havia uma barata
ou um anjo?)
não sabemos repetir nem inventar.
São coisas, são jóias particulares de Clarice
que usamos de empréstimo, ela dona de tudo.

Clarice não foi um lugar-comum,
carteira de identidade, retrato.
De Chirico a pintou? Pois sim.

O mais puro retrato de Clarice
só se pode encontrá-lo atrás da nuvem
que o avião cortou, não se percebe mais.

De Clarice guardamos gestos. Gestos,
tentativas de Clarice sair de Clarice
para ser igual a nós todos
em cortesia, cuidados, providências.
Clarice não saiu, mesmo sorrindo.
Dentro dela
o que havia de salões, escadarias,
tetos fosforescentes, longas estepes,
zimbórios, pontes do Recife em bruma envoltas,
formava um país, o país onde Clarice
vivia, só e ardente, construindo fábulas.

Não podíamos reter Clarice em nosso chão
salpicado de compromissos. Os papéis,
os cumprimentos falavam em agora,
edições, possíveis coquetéis
à beira do abismo.
Levitando acima do abismo Clarice riscava
um sulco rubro e cinza no ar e fascinava.

Fascinava-nos, apenas.
Deixamos para compreendê-la mais tarde.
Mais tarde, um dia... saberemos amar Clarice."

Minha mãe africana – Paula -, de Angola, presenteou-me com mais uma arte dela:

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