terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

O doloroso descascar


Nem sempre é fácil descascar, principalmente se for uma cebola em fase (ardida) de maturação, ou abacaxi, pepino. Mas não é sobre frutas e legumes que quero escrever aqui. Há um descascar mais, muito mais difícil, doloroso mesmo: descascar a gente mesma. Tô escrevendo besteira?... Ah, você ainda não leu nada. Daqui pra frente, é por sua conta e risco.
Tente imaginar comigo: todo teu externo descascado. Não existe mais computador, nem mesa, ou cadeira, sequer lápis, caneta, papel. Não existe mais televisão, nem radinho de pilha, nem telefonia. Não existe mais banheiro, sequer vaso sanitário. Não existe mais casa, nem carro, nem emprego, nem escola, pronto socorro, sequer uma rua, uma praça, ou igreja. Não existem mais aeroportos, rodoviárias, portos, ou estações de trens e metrô. Não há mais energia elétrica, nem eletros. Sem água, sem chão. Nada. Nada.
Agora, se aproxime: não existem mais roupas, nada de calçados, ou óculos, nem relógios, jóias, bolsas, ou cremes para o corpo, perfumes, shampoos, sabonetes. Não há mais supermercados, nem farmácias, nem shoppings, nem correios, ou agências bancárias. Nada. Nada.
Ainda há o que descascar - chegue mais perto: você não é mais neto, ou filho, nem irmão, ou pai, nem avô, ou tio, nem primo, ou cunhado, nem bisavô, ou sogro, nem vizinho, ou concunhado. Não há mais títulos: familiares, acadêmicos, profissionais. E você não escuta mais, por que ninguém mais fala. E você não fala mais, por que ninguém mais escuta. E você já não tem braços e pernas, nem olhos, nem nariz, nem boca, nem dor de cabeça, ou dor de dente. Você já não tem mais sede, fome, memória. Nada. Nada.
Ainda há o que descascar – chegue mais perto ainda: você já não é bom para alguns, nem mau para outros. Não há mais características de caráter e personalidade em você, nem imagens (as que os outros achavam que enxergavam em você, as que você pensava que tinha, nem a que você imaginava que era). Nada. Nada.
Consegue chegar mais perto ainda?... Então, tente descascar mais isso: você já não sente, nem pensa. Não sente, por que não pensa. Não pensa, por que não sente. Não sente o que pensa. Não pensa o que sente. E não há consultórios, ou escritórios, nem botequim, ou salão de beleza. Nada. Nada.

... Pronto!... Se você leu até aqui, você chegou onde eu cheguei agora: no nada – e isso é tudo.

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