sexta-feira, 24 de julho de 2015

“Ora pro nobis”

Não. Não estou no corredor da morte. Eu escolhi não viver outros sonhos, nem pesadelos, senão os meus. Não estou nos Estados Unidos, nem no Irã, no Iraque, na Indonésia, ou na Etiópia, no Paquistão, na Coréia do Sul, ou do Norte, onde pena de morte é 'ordem do dia', prática comum. Não. Estou no mais interior do Brasil, onde sonho os meus sonhos. De mais ninguém. Mas continuo na sala de espera. Enquanto espero a morte chegar, enxergo a vida que faz arder a minha visão estrábica.
Ao meu lado, senta uma senhora com uns oitenta e tantos anos - os cabelos prateados revelam o tempo que ela não esconde. “A senhora é cristã?” - me pergunta a velhinha. Nunca havia pensado nisso, mas, para consolar, de imediato, a simpática idosa, respondo que sim. Enquanto, ansiosa, ela remexe o interior da bolsa, fico pensando o que pode ser cristão, neste mundo onde a maioria quer mesmo parecer quem não é. Tem tanta gente, pelo mundo, matando, em nome de Cristo, Alá, ou sei lá mais quem - às vezes, 'autor desconhecido'. Enquanto isso, eu, na minha pequenez de ser humano, continuo tentando não ser.
Retirando um papel da bolsa, a velhinha me fala: “Com esse jornal, a senhora pode falar com Jesus Cristo”. Eu pego o jornal, em gesto incerto, agradeço, abro o papel, e, para alegria da velhinha, começo a ler, silenciosamente, a “palavra de Jesus Cristo”. Não consigo ir além da segunda linha, mas, em respeito à idosa, mantenho o olhar atento no papel. “Converse com Jesus Cristo, que tem todas as respostas”, ainda diz a velhinha, menos formal, mais animada.
Preocupada em manter o olhar focado no papel, mesmo sem lê-lo, fico pensando que respostas seriam essas que a carismática senhora teria encontrado, naquele papel. Eu, que vivo à procura de cada vez mais perguntas. Que conversa eu poderia ter, hoje, depois desse tempo nascida, com Jesus Cristo?... Não, nem quero pensar sobre religiões e fé. A fé de cada um sempre foi inquestionável - merece todo respeito. Quanto às religiões, pra mim, pelo menos, são cada vez mais questionáveis, por que, na história do tempo, são construídas e mantidas por seres humanos - imperfeitos, falíveis, medrosos, oportunistas, também. Não consigo enxergar “caminho, verdade e vida”, por onde desfilam vaidades, orgulhos, egoísmos, e trapaças. Tem lugar pra tudo. Religião, na minha visão estrábica, não deveria servir de palco de encenações e logros. Se realmente tem lugar pra todos os gostos e desgostos, os mal intencionados poderiam evacuar os ambientes de fé - dinheiro fácil pode haver em outro lugar (os canais de televisão ensinam o passo-a-passo, diariamente, nos noticiários sensacionalistas). Há tanta gente dizendo que salvou-se de um acidente, “graças a Deus” – enquanto eu questiono: Será que é, também, por “graça de Deus”, que tantos morrem em acidentes?...
... E ainda ouço a velhinha repetir: “A verdade de Jesus Cristo, vizinha (me torno vizinha dela, por parecer ler o papel que me deu), é que vivemos o final dos tempos, por que o inferno se aproxima”... Lamento dizer-lhe, bondosa senhora, o inferno tem sido escolha diária de cada um, da maioria, e, por isso mesmo, está sendo construído, com requinte, por todo lugar - nas vidas pública e privada. O fim dos tempos se arrasta, senhora, de mãos dadas com o inferno, pelas ruas, linchando a realidade, devorando nossos sonhos e o que ainda sabemos sobre o mundo humano. Ore bastante, “ora pro nobis”, fiel cristã, e mantenha os olhos bem fechados, para, ao contrário de mim, continuar sem perguntas.

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