Haia Lispector era o nome de Clarice, antes de chegar, da Ucrânia, com dois meses de vida, junto com a família (pai, mãe e duas irmãs mais velhas), ao Brasil. Clarice Lispector nasceu em 10 de dezembro de 1920, e morreu em nove de dezembro de 1977 – parece ter fechado um ciclo (?).
Muita gente já se debruçou sobre a obra de Clarice (eu faço parte desta gente), e algumas pessoas (críticos literários, professores e acadêmicos) analisaram, e ainda analisam, a literatura clariceana, enchendo as prateleiras com releituras, obras comentadas, teses e ensaios publicados. Clarice nunca se deu bem com essas 'coisas' de interpretação. Ela própria fazia questão de repetir que não gostava de rótulos, “por que o rótulo de escritora me isola das pessoas”.
O que escrevo aqui provém do meu trabalho de pesquisa sobre Clarice, a partir da própria escritora. O texto segue na contramão, como me comprometi no “primeiro da série”. Li e reli, tantas vezes, incontáveis cartas de Clarice Lispector ao então “namorado” Maury, às irmãs Tânia e Elisa, à Olga Borelli, companheira inseparável, nos últimos anos de vida da escritora, aos amigos escritores Fernando Sabino, Érico Veríssimo, Otto Lara Rezende, Lúcio Cardoso, e tantos outros. A partir daí, fui elaborando todo este trabalho, o qual encerro, nesta postagem. Pelo menos, o que me comprometi em postar no blog – o mergulho continua...
Aos nove anos de idade, Clarice perdeu a mãe, que morreu, após doença grave. De algum jeito, a filha menor da família Lispector sobreviveu (cada ser humano carrega o próprio mistério do viver). Anos mais tarde, familiarizando-se com a escrita literária, Clarice Lispector vai, aos poucos, trazendo à tona, todo o sentimento de perda e abandono. Não acredito que ela tenha resolvido isso, mas, de alguma forma, escrever sobre deve ter-lhe feito algum bem, ou menos mal.
Clarice nasceu pobre, tão pobre, que não tinha nem pátria. A infância toda dela foi no nordeste brasileiro. Só depois de alguns anos, sem a mãe, a família muda-se para o Rio de Janeiro, onde as dificuldades continuam. Em 1940, Clarice começa a cursar Direito, no mesmo ano em que o pai dela morre. Em 1943, casa-se com Maury Gurgel Valente, diplomata novato, com mais título (status mesmo) que salário. O casal começa a “via sacra” pelo mundo em guerra, e Clarice continua a conviver de perto com a miséria. Por causa da guerra, os produtos alimentícios são racionados, as roupas são caríssimas, há pouca energia elétrica disponível, os aluguéis são absurdos, etc. Quando conseguia, através de amigos, que alguma editora lançasse algum livro dela, a escritora recebia um único mísero pagamento, sem mais direitos autorais. Clarice nasceu e morreu pobre, pobre, vítima de câncer, internada como indigente num hospital público carioca.
Pelas fotografias registradas em livro, com pesquisa e organização da professora de literatura brasileira Nádia Battella Gotlib, Clarice Lispector foi uma mulher de beleza exótica, atraente e encantadora, e, por isso mesmo, ou também por isso, extremamente vaidosa. Ela mesma disse que preferia ver estampada uma foto sua em jornal que um elogio a algum livro que escreveu. Na carta de maio de 1969, ao filho Paulo, que fazia intercâmbio nos Estados Unidos, Clarice conta: “Estou fazendo regime para emagrecer: em sete dias perdi cinco quilos, e no oitava estava fraca, comi de tudo, e resultado ganhei dois quilos. Eu mesma não entendo”.
“...Havia, porém, períodos de grande dinamismo: Clarice punha-se a fazer ginástica, exercitava-se numa bicileta ergométrica, passava cremes no rosto, perfumava-se muito. Tomava suco de laranja, de melão ou de morango, dispensando os refrigerantes. Esses períodos vinham acompanhados do desejo de viajar. Examinava então cuidadosamente suas finanças, com a esperança de que houvesse folga para um passeio à Europa”. (O depoimento é de Olga Borelli, no livro “Clarice Lispector – Esboço para um possível retrato”)
Clarice Lispector era vaidosa, sim, e dava atenção a futilidades, sim, o que pode ser percebido, notoriamente, também, nas incontáveis cartas que escreveu às irmãs. Por isso, não dá para reduzir a mulher Clarice à condição de escritora. Até um certo tempo da vida dela, Clarice foi, senão feliz, alegre, animada, que alegrava e animava as pessoas do convívio dela. Houve um tempo, inclusive, em que ela manteve uma coluna feminina, assinada pelo pseudônimo de Tereza Quadros. Ela escrevia sobre tudo e mais um pouco, dando conselhos, falando sobre moda, maquiagem, sempre em tom alegre, ou irônico, e até sarcástico. Abrindo aleatoriamente o livro “Clarice Lispector – Correio Feminino” (organização de Aparecida Maria Nunes), leio: “Uma coisa é certa: nós, mulheres, desejamos e temos o dever de agradar aos homens. Ou, pelo menos, ao homem que amamos, não é verdade?” - Esta é Clarice Lispector, longe da escritora soturna. Afinal, quem era Clarice: a mulher que escrevia sobre vaidades e frivolidades, na coluna social, ou a “hermética” escritora que ainda tonteia, com seus textos, a maioria dos leitores?... Não sei – respondo eu (talvez, fosse a resposta de Clarice também). Mas ela pode ter sido uma delas, ou ambas, ou nem uma, ou muito mais – ou menos - que essas duas manifestações públicas. Vale lembrar que somente a “escritora” assinava “Clarice Lispector”. A “colunista social” assinava “Tereza Quadros”.
Mas deve ter havido, no “meio do caminho”, alguma mudança drástica, para Clarice chegar à desintegração, que ainda hoje eu percebo nela... A menina Clarice cresceu cheia de sonhos, fantasias e imaginação. A jovem Clarice apaixonou-se pelo colega de faculdade, casou-se com ele, e com ele seguiu viagem pelo mundo diplomático, deixando para trás, as irmãs, os amigos, os referenciais de vida dela.
Parece que, no nascimento do primeiro filho (Pedro), Clarice sofreu depressão pós-parto. Não disponho de elementos (literários), para confirmar a dúvida que prevalece em mim. Também, ao que parece, o casal ansiava por ter uma menina (ou Maury desejava, e Clarice torcia por satisfazê-lo). Tanto é que, durante a gravidez, ambos fizeram até lista, escolhendo somente nomes femininos à “filha” que estava chegando (ela relata isso às irmãs, em diversas correspondências). Depois do nascimento do primeiro filho, ela passa a despedir-se, na maioria das cartas às irmãs, com “fiquem com Deus”, ou coisas assim, o que não era hábito de Clarice, até então.
Também nas cartas, Clarice confessa às irmãs que não achou Pedro bonito, e que lamentou ele não trazer nenhum “sinalzinho” dela, que sofreu tanto na cesariana. Quando Paulo, o segundo filho, nasceu, Clarice o achou “lindo, engraçadinho”, e relatava, com detalhes efusivos, as “gracinhas” do bebê, às irmãs. Agiu de forma diferente, também, talvez, por que sofreu menos no segundo parto (sem depressão?).
Com os dois filhos, a família passa a morar em casa de outra família – sai da pensão aonde estava. A guerra havia terminado, há pouco, e os tempos são outros, as dificuldades aumentam, e também Clarice aumenta a lista de reclamações às irmãs. Nas cartas escritas na época, relata algumas das dificuldades, principalmente a falta de dinheiro, o que, obviamente, não revela em outras correspondências, aos amigos escritores, por exemplo. Durante a estada no exterior, a família “Gurgel Valente” visita o Brasil, algumas poucas vezes, e Clarice já não se sente mais ambientada aqui, e reclama que não tem mais lugar no mundo.
Em todo este tempo, Clarice continuou escrevendo. Um dos romances foi “Maçã no Escuro”, só editado depois que o amigo escritor Fernando Sabino fez a revisão completa da obra, alterando todas as páginas, com as devidas observações, acatadas por Clarice. No livro “Cartas Perto do Coração”, onde Sabino fala a respeito, citando, inclusive, todas as “correções” que fez em “Maçã no Escuro”, dá para se observar que Clarice não tinha “fòlego” para escrever romance. Ela própria admitiu, diversas vezes, que era relapsa, em relação à escrita: rabiscava frases (em guardanapos, talões de cheques, etc), e, depois, tinha muito trabalho, para catar todo o material, e elaborar algum conto, ou crônica, ou então, como o fez em “Água Viva”, que não chega ser romance, nem conto, com frases e pensamentos soltos, e tão próximos (vertentes da mesma fonte). As anotações de Clarice foram confirmadas pela fiel companheira dela, Olga Borelli, que conviveu com a escritora, quase dez anos, até sua morte.
Depois da separação de Maury, Clarice Lispector voltou a morar no Brasil. A vaidade foi ferida, profundamente, quando a escritora dormiu com um cigarro aceso (tomava muitos tranquilizantes), e acordou com o quarto em chamas. Na tentativa de apagar o fogo que se alastrava, queimou profundamente a mão e o braço direitos, que tiveram de receber enxerto da perna direita (que guardou cicatrizes), numa cirurgia entre a vida e a morte. Depois disso, o filho Pedro começou a ser internado em sanatórios, vítima de esquizofrenia, enquanto o outro filho, Paulo, fazia intercâmbio nos Estados Unidos, ou ficava com o pai dele, em Montevidéu.
No final da década de 60, Clarice conhece Olga Borelli, que aceita ser sua amiga, após ler a carta de “pedido de amizade”, escrita por ela. Lendo “Clarice Lispector - Esboço para um possível retrato”, percebo que Olga Borelli (a autora) realiza dois movimentos, contraditórios à primeira vista, mas compreensíveis. O primeiro movimento é tentar mostrar a simplicidade da dona-de-casa e mãe Clarice Lispector. Mas, em seguida, parecendo ato inconsciente, é a mesma Olga quem relata que observar Clarice parada, perdida em seus pensamentos, era ficar à espera da materialização de alguma coisa.
Como a professora Nádia Gotlib, que ainda pesquisa os 'rastros' de Clarice Lispector, Olga Borelli também alimenta o “mito sagrado”. Talvez, ambas, apaixonadas por Clarice, queiram manter a imagem da escritora “hermética”, até inconsciente e inocentemente, para que Clarice Lispector não seja abandonada ao esquecimento, e continue instigando mais leitores, no mundo inteiro.
Na minha opinião, Clarice desintegrou-se, e, a partir disso, passou a corresponder à “persona” que criaram, à revelia da personalidade (desconhecida) dela. Até por que – é preciso reconhecer – Clarice Lispector passou a ser “aceita” no meio literário, depois que começou a escrever “coisas estranhas”, questionando-se a si mesma, e, com isso, questionando quem a lesse. Isso ela faz até hoje, com os milhares de leitores.
Penso que Clarice escreveu o que escreveu, por ter se perdido de si mesma – perdeu os sonhos, e a noção da própria realidade dela, que ocupava um espaço no mundo, ao qual recusava-se, pois não era o que desejava. Mas continuava viva. Precisava fazer alguma coisa, para não viver só. Por isso, a meu ver, toda a escrita dela era fragmentada – em pedacinhos de papéis catados por Olga Borelli, nos últimos anos - a mesma Olga, aliás, que motivava a escritora, e não lhe deixava ao abandono de si mesma. A presença de Olga foi fundamental à sobrevivência de Clarice, que lhe ditava frases, instantes únicos de lucidez, até os últimos minutos de vida.
Além da solidão, Clarice Lispector temia o isolamento, e pedia tanto que Olga mantivesse a mão dela junto à sua, até a morte. Assim aconteceu. Foi Olga Borelli, inclusive, que ajudou Clarice a organizar o último livro: “A Hora da Estrela”. Eu não tenho dúvida de que o livro mais realista (de “cunho social”, como dizem alguns críticos), assinado por Clarice Lispector, contém um pouco de Olga Borelli, na própria “feitura escrita” dele. Amizade – leal e terna amizade.
A professora Nádia Battella Gotlib, “expert” da escrita clariceana, afirma sempre que Clarice Lispector se ficcionalizou. Discordo. Acho que Clarice foi ficcionalizada, e, aos poucos, foi se moldando à “imagem”, já que estava recebendo atenção por isso, e o que ela mais desejava era a aproximação das pessoas. Penso que, para não viver tão só, Clarice aceitou vestir o 'traje' da mitificação. Tanto é verdade, que ela não vivia alienada, como imaginavam alguns que a analisavam, na época. Pelo contrário. No início da vida, teve sonhos, que poderiam ser realizados, mas não foram. Para sobreviver (?), se recolhia na fantasia, mas voltava à realidade, e assumia posições, decisões na própria vida. De repente, se via “golpeada”, mais uma vez, como quando criavam novas edições de sua obra, sem sequer comunicá-la, e voltava ao universo imaginário. Pra mim, Clarice não suportava a realidade em que se via inserida. Quiseram tanto que ela fosse quem ela não era, que ela acabou não sendo mais criatura alguma, ainda que continuasse agindo como uma pessoa. Foi ela própria quem escreveu que “com o tempo, estou desaprendendo de ser gente”. Acredito que ela tenha escrito pouquíssimo, se comparado à vida imaginária que alimentou em refúgio, além do que se pode supor ser o “poço fundo de Clarice Lispector”.
Como se não bastasse todo o conflito íntimo (de não poder ser quem era, pois só recebia atenção, quando correspondia à imagem hermética que fizeram dela), Clarice tinha plena consciência das dificuldades financeiras que sofria, o que lhe causava raiva, não maior que a raiva que sentiu, ao saber do câncer que a consumia. Quando soube confirmada a doença, pediu à Olga Borelli que escrevesse: “(...) Dentro do mais interior de minha casa morro eu neste fim-de-ano exausta. Até fim-de-ano eu tive. Mas como se verá – não correu sangue. Bem que eu queria que correse, e do mais brilhoso e da mais espalhafatosa faísca de fogo só para que fique provado em veia grossa minha foi tão de súbito lancetada. Chorei de raiva, raiva contra mim mesma. Me detestei por ser tão ingênua. Minha desordem criadora: do caos nascem as estrelas. Mas esta estrela, a do fim-de-ano, era de carne, pensava, e, a cada talho, doía. (...)"
Diversas vezes, Clarice Lispector escreveu ser uma estátua – tão fria. Logo depois, se contradizia (nas atitudes), pois o que mais buscava era amor (calor) humano. Quem sabe, até hoje, sua obra inteira continue a busca insistente. Enquanto a maioria dos leitores busca a obscuridade da escritora, que continua a ofuscar cada livro seu, a estátua de Clarice permanece lá, na praça de Recife – uma esfinge de pedra, talvez, a nos dizer, em seu instigante mutismo: “Nem tente me decifrar, por que, há muito, tive a alma devorada”...