segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Entre tantos

Aviso aos navegantes dessas águas: ‘Ela’ pode ser ‘ele’ também. ‘Ela’, por que somos nós – ‘elas’, as mulheres -, que mais demonstramos preocupação (na minha opinião, claro). Nada além disso. O resto fica por sua conta e risco.

Ela sentiu uma “dorzinha de cabeça” – não deu importância, por parecer trivial. Mas a dorzinha tornou-se uma dor quase insuportável. Ela procurou remédio que tinha em casa, encontrou uma aspirina, e tomou sem pensar. A cefaléia amenizou. Pouco tempo depois, ela sentiu enjôos, falou à amiga com quem estava no telefone. A amiga ponderou que a aspirina provocava, às vezes, tal sintoma, e aconselhou que ela tomasse um medicamento digestivo. Ela não tinha em casa, foi à farmácia, pediu o digestivo mais usual, e voltou para casa, tomando-o em seguida. A “dorzinha de cabeça” voltou, ela não conseguiu dormir, e, pela manhã, saiu, acompanhada pelas olheiras da madrugada insone. Em vez de ir ao trabalho, ela procurou um consultório clínico geral, relatou ao médico o que acontecera, saindo de lá com uma receita com os nomes de dois medicamentos recém lançados no mercado. Foi à outra farmácia, comprou os caros remédios, voltou para casa, e ligou para o trabalho, informando estar doente. Tão logo começou o tratamento indicado pelo clínico geral, ela percebeu que os intestinos trabalhavam sem parar, até que ela não conseguiu levantar-se mais do vaso sanitário. Defecando fezes cada vez mais líquidas, ela correu à lista telefônica, buscando um gastroenterologista para salvar-lhe. Marcou a consulta, que seria no final da tarde. Voltou ao vaso sanitário, de onde saiu, para tomar banho, improvisar uma fralda, camuflada numa calça larga, e foi à consulta. O gastro explicou à ela que tratava-se de uma síndrome intestinal, e receitou-lhe mais dois medicamentos, orientando-a que evitasse a maioria dos alimentos. Quase sem forças, ela recorreu a um taxi, pedindo ao motorista que comprasse os medicamentos na farmácia, cobrando-lhe o valor, no carro mesmo, já que ela não tinha condições físicas de sair dali. Assim foi feito. Voltou para casa, medicou-se. Uma vizinha foi visitá-la, e preparou-lhe um chá, que ela nem ficou sabendo de quê. Bebeu, em estado letárgico. Adormeceu. De madrugada, acordou suando frio. Buscou um dos medicamentos, engoliu com a boca seca, na penumbra do quarto. Desmaiou. Pela manhã, a faxineira, que ia limpar o apartamento, duas vezes por semana, a encontrou desacordada, pálida, ainda suando frio. A faxineira não sabia de qualquer doença que ela pudesse ter. Chamou a empregada do apartamento ao lado, que sugeriu que ligasse para o pronto socorro mais próximo. Assim fizeram, e ela foi parar numa enfermaria, com soro glicosado – justamente ela, em permanente tratamento de “diabetes mellitus”. Tão logo despertou, ela informou o detalhe à atendente de enfermagem. No final da balbúrdia, com a chegada do médico de plantão, ela recebeu alta dosagem de insulina, e foi liberada, sem exames. Sozinha na calçada, com o roupão de banho escondendo o pijama, atravessou a rua, cambaleando, à procura de mais um médico. Entrou na clínica mais próxima, em busca de um médico que lhe atendesse naquele instante. O clínico geral tinha agenda vaga. Atendendo pedido dela, ofereceu-lhe um copo d’água. Hidratada, com a insulina agindo, ela foi relatando ao médico, silencioso, o que acontecera. “Pelos sintomas que a senhora relata – disse ele, calmamente -, vamos precisar fazer um check-up”. Sem olhar para ela, pegou o bloco, na mesa, e começou preencher as solicitações de exames complementares, como hemograma, exames de fezes (parasitológico), creatinina, colesterol total e fração, triglicérides, ácido úrico, glicemia, urina rotina, eletrocardiograma, ergométrico e raios-X do tórax, entre outros. Depois, o médico carimbou todas as folhas, rubricando em seguida. Ela só poderia começar o encaminhamento dos exames, no dia seguinte. Obedeceu. Foi para casa, mas não quis atender a vizinha, que insistiu, por algum tempo, na porta. Ela fingiu-se morta, pensando que poderia estar mesmo. Tomou um banho, não quis saber que horas eram, e foi deitar. No dia seguinte, acordou sem despertador, tomou outro banho, e, em jejum, saiu para providenciar todos os exames do check-up. Gastou o pobre dinheiro que tinha na conta bancária, e o que não tinha também. Durante dias, enquanto os resultados dos exames não eram entregues, ela sobreviveu como pôde: basicamente, a pãozinho francês e água mineral sem gás – nada de chás, nem medicamentos. Sobreviveu. Mais uma vez, estava diante daquele médico silencioso, que não a olhava nos olhos. Após ler meticulosamente os resultados de todos os exames, sem qualquer comentário, o médico anunciou o “veredicto”: “A senhora terá de operar a vesícula, para retirada de cálculos, pois o seu diagnóstico é litíase biliar”. Dito isso, o medico levantou, entregando à ela, a requisição para “internação imediata, e cirurgia no dia seguinte”. Perplexa, ela fica sem palavras, utilizando-se do emprestado silêncio do médico, que se retira da sala do consultório, deixando-a sozinha, olhando o branco das paredes vazias. No hospital, ela dormiu, a maior parte do tempo em que esteve lá, muito mais em consequência dos sedativos que lhe foram ministrados. Na manhã seguinte, no horário estabelecido, ela foi encaminhada à sala de anestesia, e à cirurgia, finalmente. Quando despertou, ainda zonza, pôde ouvir a discussão entre várias pessoas vestidas de jaleco branco. A voz mais estridente dizia: “O médico dela já foi informado, está a caminho”. Outra voz, masculina e grave, demonstrava preocupação: “Só quero ver no que isso vai dar, por que a imprensa está em cima desses casos”. Lentamente, ela voltou a adormecer, não ouvindo mais nada. Quando acordou, o mesmo médico silencioso estava diante dela, chamando-a pelo nome. “O que aconteceu?” – perguntou ela, sem pensar. E ele, baixando os olhos, esclareceu: “Fique calma, a senhora voltará a dormir, e amanhã poderá ir embora. Houve um pequeno engano, na cirurgia, e, em vez de retirarem os seus cálculos biliares, retiraram seu apêndice. Mas nada grave. Fique tranquila, por que, entre tantos, o seu caso é mais um, sem consequências negativas”. Novamente, ela não escutou mais coisa alguma. Ela só acordou no dia seguinte, já em casa, com a faxineira a oferecer-lhe um comprimido, junto com um copo de água: “O médico, antes de sair daqui, me fez prometer que a senhora tomaria este remédio”. Com a boca seca, um pouco dormente, ela obedeceu, e ainda ouviu a faxineira: “A senhora andava muito impressionada com essas coisas de doença, mas não se preocupe, por que o comprimidinho que a senhora acabou de tomar era uma simples aspirina”. Ela riu, para não chorar. Virou à parede, e lembrou, em silêncio, que, na infância, ficou sabendo de uma lenda que dizia que o nome aspirina provinha do “Santo Aspirinus”, Bispo de Nápoles, padroeiro das dores de cabeça.

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