segunda-feira, 13 de julho de 2009

Enfrentando o ‘bicho-papão’


Desde que a gente nasce, o medo nos persegue, às vezes, nominado, outras, nem isso. Mas o ‘bicho-papão’ nos persegue a vida inteira – seja no medo de avião, em todas as fobias, no medo de enfrentar situações difíceis, etc. A convivência se torna tão ‘habitual’, que acabamos por não saber mais viver sem o ‘bicho-papão’. Quando alguma coisa nos entristece, nos revolta, nos causa dor, lá vamos nós nos refugiar, novamente, no colo do ‘bicho-papão’, que, com suas “garras” (todo ‘bicho-papão’ deve tê-las afiadas), nos mostra que o mundo é mais medo que qualquer outra coisa.
Confesso que tenho uma queda por desafios, e, por isso, vivo desafiando a mim mesma. Não gosto de desafiar os outros, por que não sei se gostam de desafios. Por isso, desafio a mim mesma, que sei que gosto – e como gosto. Às vezes, percebo alguém tentando me desafiar, mas a maioria tem outra intenção (não a minha), quando provoca isso. Desafio tendencioso é uma ‘merda’, por que já envolve concorrência, comparações, etc e tal. E eu sou dos – grandes e pequenos – desafios simples, despojados de qualquer intenção, a não ser superar a mim mesma. Claro, nem sempre venço o desafio a que me imponho, mas fica o suor do esforço em tentar, tantas vezes, superar alguma coisa em mim mesma.
Tanta ‘enrolação’, só pra te contar que, dia desses, decidi enfrentar mais um ‘bicho-papão’. Pra mim, um desafio enorme. No início deste milênio (é coisa histórica), fui sequestrada por uma tribo indígena, depois de ter publicado matérias com fotos de crianças índias loiras (isso mesmo, loiras, olhinhos bem azuis, e índias, acredite no que nem eu acreditei). Ah, publiquei uma foto também do cacique falando ao celular, vestindo calça jeans, camiseta de marca, calçando um par de tênis da moda.
Cá entre nós, eu pedi pra levar, né não?...
Ah, depois de ter publicado todas as matérias (por que foi uma série diária), ainda voltei lá, na tribo. Afinal, os índios haviam interditado a (única) estrada de passagem dos agricultores. Eu precisava ir, fazer outra matéria, cumprir o meu papel (trabalhava num Jornal – jornal feito de papel). Claro, levei uma digital, que, na época, tinha disquete (alguém lembra disso?). Se hoje eu tivesse netos, com certeza, lhes diria: Pois é, vovó trabalhou, há menos de dez anos, com digital que precisava de disquete, para fazer as fotos de reportagens. E eles, meus netinhos imaginários, nem conseguiriam imaginar algo maior que um chip.
Pra resumir a história, antes mesmo de ser interpelada pela ‘indiada’, fiz diversas fotos, por que todas as índias (umas vinte, acho, por que não tive tempo de contar) vieram juntas em minha direção. Eram fotos, na minha visão, históricas. A brincadeirinha acabou, quando elas ficaram próximas, me empurraram, com pedaços de paus, em direção a um cemitério desativado, e lá tentaram me amedrontar. Não lhes respondi, nem correspondi. O máximo que fiz foi olhar-lhes bem nos olhos, e, enquanto prendia a atenção delas, escondi o disquete com as fotos, no bolso do casaco.
A partir daí, foi uma baixaria só. Logo, chegou o ‘cacicão’, que tentou me desafiar, lembrando as fotos que eu havia publicado. Como se fosse necessário, ainda relatou a minha condição ali, à mercê de todos eles – dezenas de índios e índias, e indiozinhos (até os loirinhos de olhos azuis estavam lá).
Sei lá o que deu na cabeça do cacique, que, horas depois, tomou a iniciativa de me dar o celular dele, para eu ligar para o proprietário do Jornal em que eu trabalhava. Liguei. No Jornal, mexeram ‘meio mundo’, e até o Comandante da Polícia Militar, amigo meu na época, estava disposto a ir lá na tribo, para me resgatar. Com a minha liberação, anunciada pelo cacique, eu preferi cortar algumas cenas do filme, e voltei ao Jornal, de carona, com colegas de uma televisão local, que foram para lá fazer matéria sobre a interdição da estrada. Quando contei-lhes sobre o sequestro, preferiram sair, sem qualquer imagem. O caso acabou na Polícia Federal, aonde apresentei o disquete como prova.
O tempo passou, e o ‘bicho-papão’ continuou grunhindo na minha alma. Acredite, cheguei atravessar ruas, quando enxergava índios no meu caminho. Mas isso tudo, de forma silenciosa, sem escândalos. Mas eu sabia que, algum dia, eu teria de enfrentar a ‘fera’, o medo.
Dia desses, “por acaso”, uma amiga me ligou, pedindo se eu queria ir com ela em tribos indígenas da região, aonde ela trabalha na coleta de água. “Será uma aventura e tanto, você vai gostar”, me disse, tentando convencer-me. Minha amiga não sabia, ainda não sabe, do filme que eu acabei de relatar aqui. E eu só pensei: não há aventura maior pra eu ainda viver no meio dos índios. Demorei um pouco a dar-lhe resposta. Eu precisava pensar, medir o grau do desafio, se valia a pena, se não era melhor permanecer com o medo, que já convivia comigo há tanto tempo.
Entre “os pós e as contas” (como diz um amigo meu), decidi enfrentar o ‘bicho-papão’. Claro, tive de adiantar meu trabalho, pois não tenho hora, nem dia de folga. Mas o que é o trabalho, diante de um ‘bicho-papão’, né?... Mas eu não tinha elementos, dentro de mim, pra me preparar ao ‘embate’, que seria, com certeza, surpreendente. Nem tinha mais o fio da meada nas mãos – o que pensar, o que faria, se.
Na manhã marcada, lá fomos nós às aldeias indígenas. Mas aquela, justamente aquela, ficou por último. E, diante de tantas nuvens, tantas árvores, tanta natureza perdida pela estrada, eu - confesso - cheguei esquecer o reencontro com aquela tribo.
De repente, lá estava eu, diante daquelas fisionomias que me são inesquecíveis, numa outra situação, atípica, completamente diferente – talvez, por isso, não me reconheceram. Minha amiga, sem saber de nada, percebeu o meu silêncio, e, na saída, manifestou isso. Eu nada lhe disse, para não sair de lá, vestida de vítima, pois fui eu que causei a ação dos índios, naquela época.
Agora, enquanto escrevo, beeeeeeeeeeeeeeeem longe daquela aldeia, fico pensando que o ‘bicho-papão’ que guardei no imaginário era mais condizente com o meu medo, do que com aquela tribo miserável. São índios que receberam terra, e não plantam; recebem roupas, que ficam jogadas pelo chão, chafurdadas pelas chuvas. Perderam a própria identidade, e recebem esmolas de uma outra ‘civilização’. Estão à margem de uma história, que já não é mais a deles, por que não constroem.
O ‘bicho-papão’ chorou, e eu não tinha lenço, para secar-lhe as lágrimas. Nem penso se venci algum desafio, com isso. Não sinto medo. Talvez, o ‘bicho-papão’ nunca tenha existido. Nem o medo.
Que venha o próximo – por que sempre vem...

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