terça-feira, 28 de julho de 2009

As medidas do peso


Se existe um tema que sempre dá e ‘vende’ ibope é a condição da criança. Discursam políticos. Juízes, advogados, e tantas outras ‘otoridades’ defendem os direitos da criança. Todo mundo tem sempre palavras ‘nobres’, quando se refere à criança. Acho que é por que o assunto emociona quem ouve, quem lê, quem assiste, pois toca fundo a alma humana, que, voluntária ou involuntariamente, alimenta esperanças, sempre ‘empurrando’ para o futuro, o melhor da vida.
O Estatuto da Criança e do Adolescente – o ECA (não gosto da abreviatura, me causa náusea mesmo!) – completa, este ano, 18 anos, mas ta tão feinho, coitado, pisoteado, amassado por tantas mãos interpretativas, hipócritas. São tantos os direitos das nossas crianças, que a maioria delas acaba mesmo ‘despencando’ na sobrevivência, sem qualquer direito.
Criança é sempre um olhar que me fascina (talvez, por que também eu queira acreditar em algum futuro, não sei). Durante todos esses anos de trabalho jornalístico, fiz incontáveis matérias sobre, abordando inimagináveis aspectos. Às vezes, até eu me surpreendia, diante do “furo de reportagem” que tinha à minha frente. Mas, mais, muito mais que o trabalho, de todas as matérias de comportamento (minhas prediletas), tudo o que envolve a criança me fascina mesmo.
Só vou relatar alguma coisa da minha memória, pra que você acompanhe o que estou tentando escrever. Já entrevistei garotos de 10-12 anos, em pleno ato de furto (percebi isso, ao virar uma esquina). Enquanto um permanecia de olho no movimento da rua, sentado no muro alto, o outro (que, até então, eu não sabia) devia estar furtando objetos dentro da casa, que nem se podia ver da rua. Eu me aproximei lentamente, “como quem não quer nada” (eu nem sabia o que queria mesmo, e se queria alguma coisa). Percebi que o garoto estava ajudando o outro, que subia no muro, com um saco de viagem maior que ele. Quando me viram, obviamente (eu também faria isso), saltaram à calçada, e tentaram disfarçar a ‘bagagem’. O meu disfarce venceu. Cumprimentei os dois, fiz de conta que não havia percebido coisa alguma, e ‘puxei papo’, conversa fiada mesmo. Aos poucos, ambos perceberam a atenção e o respeito (sinceros) que estavam recebendo. Quando sentamos, os três, no meio-fio, eu propus fazer uma matéria, eles toparam. O “olheiro” disse que queria ser advogado, “pra defender quem não sabe se defender sozinho”, e o “transportador” (da ‘bagagem’) disse que pretendia ser médico, e ganhar muito dinheiro. Fiz até fotos dos dois (sem identificá-los, claro). No final, falei que eu só queria fazer um pedido, antes de ir: Voltem na casa, e devolvam a ‘bagagem’. E me afastei, fui embora, sem olhar pra trás. Longe, quando voltei a olhar, não os vi nunca mais.
Outra vez (essa não é história jornalística), eu estava atravessando uma praça central, e vi uma garotinha linda, cinco aninhos, no máximo, sujinha, chupeta na boca, sozinha. Fiquei olhando fixamente pra menina, até ela se aproximar de mim, e, com a chupeta presa entre os dentes, tentar puxar minha bolsa. Queria furtar. Tentei falar com ela (uma criancinha!), enquanto ela me interpelava: “então, me dá dinheiro, me dá dinheiro”. Sem tirar a chupeta da boca. Acabou desistindo de mim. Eu não a esqueci.
Por onde vou, sempre vejo crianças e adolescentes puxando ou empurrando carrinhos de papelão (não sabem eles o quanto contribuem com o “inteiro’ ambiente). Alguns bebês são carregados dentro dos carrinhos improvisados, cobertos com pedaços de papelão. Não faço fotos dessas imagens. Perambulam o dia todo pelas vias públicas, às vezes comendo o que encontram nas lixeiras, e o dinheiro que conseguem, na venda dos papelões, dão para os pais, em casa, ou então gastam com pedras de crack, consumidas em latas de refrigerante, ou cerveja, que encontram nas calçadas da vida.
Diante de tudo isso que narrei aqui, permita manifestar que não suporto ouvir discursos inócuos sobre o trabalho infantil. “Criança não deve trabalhar, só estudar”. “Criança tem direito à educação, ao lazer, etc”. Todo esse ‘palavreado’, pra mim, não passa de baboseira, coisa de gente que não conhece a realidade infantil, gente que não atravessa uma rua sequer, gente que permanece, lá do alto do seu prédio, observando o mundo, e falando ‘merda’. Lamentavelmente, é justamente esta gente que é entrevistada, que está na mídia, que recebe destaque nos eventos (sempre na hora do discurso). Tudo por que (e só por isso) fala bem, é gente bem articulada – boa aparência, olhar persuasivo, timbre de voz seguro, e essas ‘merdas’ todas que a gente lê (até sem querer) nessas mensagens de auto-ajuda, que não ajudam, anestesiam apenas.
Trabalho infantil não pode?... Ah, mas se é na televisão pode, né?... Desde manhã, até de madrugada, os canais de televisão exibem crianças, em seriados, novelas, programas “infantis” (traduzindo: retardados e recheados de violência). Ah, mas são crianças lindas, limpinhas, bem nutridas, bem vestidas, bem maquiadas, bem ‘adestradas’. Ora, não seja por isso. Basta pegar qualquer criança, qualquer uma mesmo, em condição de rua, dar um banho, com muita água, sabonete, shampoo, e depois providenciar os retoques finais: banho de loja, banho de cabeleireiro. Pronto. O pequeno catador de papel, ou o pequeno vendedor de balas e chicletes (que a gente nem olha) no sinal, está ‘no ponto’ para ir trabalhar na televisão (já que, na TV, ele pode trabalhar). Ora bolas, sem essa de “dois pesos, duas medidas”. O que precisamos mudar são as medidas (práticas) do peso da nossa responsabilidade, em relação ao universo infantil. Menos ou mais que isso é blá blá blá...

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